14.8.08

Xenofobia de ricochete


Dias tumultuosos, estes de assaltos a bancos que terminam com o directo televisivo da liquidação dos assaltantes à bala, ou de desacatos inter-étnicos nos arrabaldes de Lisboa que fizeram de um bairro cenário de um filme hollywoodesco, ou de um assalto que terminou com a morte do filho (treze anos) de um dos assaltantes. Em certas pessoas, a proclamada silly season desata em violenta criminalidade. A outros, comentadores por excelência e todos encartados em sociologia de pacotilha, serem testemunhas da violenta silly season dá-lhes para compor hinos ao disparate.


O denominador comum a estas erupções de criminalidade violenta: arrufos étnicos, sempre com imigrantes ou minorias étnicas no papel de maus da fita. Os sequestradores de um banco eram brasileiros; nos arredores de Lisboa, o bairro que viveu o pânico de armas de fogo de calibre proibido foi palco para um conflito entre pretos e ciganos; o adolescente morto na perseguição policial era cigano. As exacerbadas facções com vigoroso cardápio para acusação e réplica. Há quem veja nisto a prova de que imigrantes e minorias que teimam em viver à margem têm um dom inato para o crime. Não lhes interessam as estatísticas que provam a mesma percentagem de criminosos nessas comunidades e entre os nativos de gema.


Do lado contrário, virgens ofendidas servem-se no prato da exclusão étnica para nutrirem o seu catecismo. O exemplo mais patético vem das acusações à polícia por ter usado força excessiva que levou à morte do jovem – sem questionarem o progenitor: "que raio estava o seu filho a fazer num assalto?" Não sei se o pai responderia "o tirocínio para a vida" e se das esquerdas folclóricas a habitual miopia trataria do silêncio sepulcral que se seguia. Nem de propósito: acabo de ler que o pai que agora faz o luto do filho é um foragido da cadeia desde 1999. Se é cigano ou deixa de ser, é irrelevante para o caso.


Não me apetece dar para esse peditório, onde a discussão anda tão apaixonada que por vezes roça a irracionalidade. Não consigo aplaudir a actuação da polícia que libertou, à força da bala, as pessoas sequestradas dentro do banco pelo duo de brasileiros. E não consigo varrer o lixo para baixo do tapete e acusar a polícia de uso exagerado de força, para logo de seguida assinar por baixo a tese de racismo contra a comunidade cigana. Nem me interessa saber o solo onde nasceram os que cometeram aqueles crimes. É obsceno argumentar que os estrangeiros, os assimilados que se recusam a integrar, ou os ciganos são criminosos em potência, como se os nativos envergassem, sem excepção, uma auréola sob as suas castas cabeças. Prefiro atirar a seguinte provocação aos que se digladiam com estas coisas: não é o brasileiro, ou o preto, ou o chinês, ou o indiano, ou o cigano o alvo maior da xenofobia indígena. É o filho do emigrante em França que se apropria do Agosto e enxameia a terra pátria dos progenitores com a sua estética lamentável e o francês de subúrbios.


Estes luso-franceses passam incólumes à vergasta dos conservadores de sacristia e salazarentos ressabiados, como passam imunes à suprema moralidade dos fradescos que arribam às esquerdas. Aos primeiros, a lente ofusca-se porque a gente que anda lá fora a remeter divisas para o luso enriquecimento é gente honrada, trabalhadora, um exemplo para o que escasseia na portugalidade deprimida. Ocultam o dedo acusador porque em matéria de estética os conservadores de sacristia e os salazarentos ressabiados rivalizam com os jovens luso-franceses que dão à costa. As esquerdas folclóricas têm que engolir um sapo. São muito prendados quando chega a hora de medir padrões estéticos. Adivinho-os horrorizados num qualquer recanto, citadino ou urbano, onde irrompe um magote de luso-franceses em exibição supina de mau gosto, com o já de si grotesco francês que se solta com estridência, os automóveis que prestam homenagem à tradição da geração anterior, conhecida que ficou por carregar os veículos de adereços inenarráveis. As esquerdas folclóricas engolem em seco e reprimem a censura estética porque se lembram, a tempo, do catecismo contra as exclusões. Como conciliam esse catecismo com os seus excelsos predicados estéticos e a anti-estética dos filhos dos imigrantes em França, é um enigma.


Nesta época de silly season, ao pensamento em apatia perdoam-se deslizes que o colocam à beira do abismo. Que me seja permitido o direito ao disparate próprio da época, para confessar uma irrefutável descompensação quando vejo a horda de filhos de emigrantes que tomam conta de Agosto e de todos os lugares. E para admitir que se trata de xenofobia, uma xenofobia com causa desculpabilizante (se for permitido ser juiz em causa própria) por ser motivada por estéticas considerações.


Admito: uma xenofobia que vem de ricochete. Aqueles luso-franceses são filhos de lusitana gente. Sempre usámos desta xenofobia contra os emigrantes que regressavam à terrinha em Agosto e, ao que parece, nunca demos conta do pecadilho. Pode-se dizer, visto daqui: era uma gente que se punha a jeito. Cá refugiados, riamo-nos da ridícula pesporrência do emigrante temporariamente de regresso às origens. E caímos na armadilha: sem percebermos, éramos xenófobos contra a nossa gente.


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