Há alturas em que as loas à tecnologia se diluem por causa das intenções dos mandantes. Ou do uso que os mandantes querem dar às tecnologias. A informática e os sistemas de informação, que inovam a uma velocidade vertiginosa, são um sintomático caso de estudo de como algo que é bom pode ser transviado por malévolos caminhos. Acontece quando a gente que governa decide deitar a unha à tecnologia inovadora para manter uma estreita vigilância sobre os governados. Sempre com evasivos pretextos a embelezar um e mais outro acto do Estado policial em que progressivamente vivemos: vendem-nos a ideia de que é em nosso favor que a vigilância se processa. E nós, lorpas, na conversa. Sem percebermos que é tão perigoso passar um cheque em branco a quem pratica entorses graves às liberdades.
Deste governo é preferível abster-me de adjectivações e qualificativos. Para não ser maçador, tantas as vezes que acabo empurrado a escrever sobre o colectivo que governa. Haverá críticas infindáveis que incomodam o convencimento de suas excelências quanto à generosidade e à proficiência da governação. A meu ver, o crime mais lesivo é a irreprimível tentação deste governo ser genuinamente socialista, no que o termo possui de pior quando toca a avaliar o grau de intervencionismo, até onde vai a dose de milagrosa engenharia social.
O recente episódio convoca uma metáfora – a metáfora do concubinato entre o presidente da república e o primeiro-ministro. O primeiro tinha nas mãos uma lei que obriga a instalar um chip nas matrículas dos veículos. Dizem-nos: para combater uma das sementes de criminalidade violenta que, sinal dos tempos modernos, cresce de forma assustadora – o car jacking. É para estarmos sossegados. Lá no governo, um crânio sabedor das maravilhas dos avanços tecnológicos descobriu maneira de acabar com o car jacking. Os meliantes, decepcionados, deixarão este tipo de crime. Porventura arriscarão outra variante de criminalidade, o que há-de fazer queimar alguns neurónios na malta do governo. Decerto apta a descobrir mais uma maneira de impedir as novas expressões de criminalidade que a inventiva mente humana está sempre pronta a experimentar.
Só que a generosidade traz desconfiança no bico. Apetece lembrar o conto infantil do menino e do incêndio que tantas vezes protestou, fazendo cair no logro as pessoas alarmadas. Da única vez que o alarme não era falso, ninguém acudiu à chamada. Pode o governo dar garantias de reserva da privacidade dos proprietários dos automóveis com chip na matrícula, que a desconfiança não se desvanece. É aqui que entra a alegoria do concubinato. No palácio de Belém mora alguém que tem puxado da caneta vermelha por várias vezes, sempre que considera que diplomas do governo vão contra a Constituição. Se calhar tem acertado no alvo errado (porventura, na lei do divórcio). Noutros casos, quando devia ser árbitro dos valores constitucionais – e as liberdades encaixam aqui – prefere não fazer mossa no concubino primeiro-ministro. Teve a oportunidade para mandar para trás esta perigosa lei do chip nas matrículas dos automóveis. Preferiu não transtornar o concubinato. A sacrossanta estabilidade que tanto apregoa. Deve valer mais que os princípios fundamentais – e, repito, as liberdades são-no –, que assim manda às urtigas.
E por que desconfio? Lá de Belém veio uma advertência, o chá que o governo deve tomar: que a lei estabeleça sem rodeios que a instalação do chip não pode servir para invadir a privacidade dos automobilistas. O governo mandou dizer que sim, que vai acautelar os interesses que correspondem às liberdades individuais. Eu não me sossego com esta garantia. Tenho o direito de desconfiar desta gente que já mostrou, por tantas vezes, que não respeita as liberdades. Por mais garantias que sejam dadas, quem assegura que, às escondidas, os funcionários públicos com acesso ao sistema não possam, se quiserem, ficar a saber em que dia, a que horas e por onde tenho andado?
O problema maior está no precedente que se abre com este chip. Os caninos já são obrigados a ser portadores de um chip. O passo seguinte será a aplicação do chip nas matrículas dos automóveis. Que, como se sabe, são conduzidos por pessoas. O incrementalismo leva à interrogação: qual será o pretexto encontrado para incrustar um chip directamente em gente?
Devagar, devagarinho, estes socialistas que mentem às liberdades vão levando a água ao moinho. Policiando as liberdades. Espiolhando vidas. Mal vai a liberdade quando é tutelada por estes mal afamados amantes da "liberdade" – da liberdade com aspas, e das grandes. Sim, gostam da liberdade. Quando são eles a vigiá-la. Gente medonha.
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