É verdade que deixei de ter paciência para ler o Expresso. E para ler João Carlos Espada. Ou vice-versa, para o caso nem interessa. Este fim-de-semana cheguei à que continua a ser a sua crónica semanal no Expresso, onde destila verdades insofismáveis que envergonham um liberal de boa cepa. Coisa que o estudioso da teoria política não é, por mais que faça de si o embaixador nacional do liberalismo. Quem vem de onde Espada veio – ideologicamente falando – só pode, e quando muito, ser um liberal convertido. Neste caso, com a mácula dos calhamaços de extrema-esquerda que, devotamente, devorou – literatura que está nos antípodas do liberalismo de que Espada pensa ser expoente máximo, invocando amizades com Popper e Dahrendorf e Isiah Berlin, como se esses cartões-de-visita o transformassem no cardeal do liberalismo em lusas terras.
Valha a verdade – e agora viro-me para o tema que traz hoje à escrita – que todos temos o direito a provocar gargalhadas nos outros. Mesmo quando essa não é a nossa intenção. E que a ninguém seja recusado o direito de pertencer a uma tribo particular e de se orgulhar dessa pertença, trazendo a público escritos encomiásticos dessa pertença. Espada faz gala da sua condição de sócio de um clube de gentlemen em Inglaterra. Depois exporta para esta terra de lúcidos machos latinos a sua experiência ao mesmo tempo snob e descontextualizada. Espada devia ser inglês. Mas não há como renegar a terra onde se nasceu. E mesmo que ela seja renegada, através de requerimento que convoca a apátrida condição, o lugar onde a pessoa nasceu fica registado para todo o sempre. A menos que um deslize estalinista – os fundilhos da memória… – seja o apetitoso pretexto para refazer a biografia.
A provar que Agosto é um mês em que as pessoas, estando de férias, se dedicam ao supérfluo, até o académico que agora também é consultor do presidente da república não consegue reprimir os devaneios que semeiam a boa disposição no leitor. Nesta semana perorou sobre o dressing code no dito clube de cavalheiros londrino que frequenta. É o malfadado calor que convida a deixar a obrigatória gravata em casa, para o corpo dos cavalheiros não suar em estopinhas e um odor desagradável tomar conta de ambiente tão selecto. No fim da croniqueta de Espada, os leitores saem doutorados em clubes de gentlemen mais as regras sobre o código de vestuário.
Como resistir às deliciosas palavras de Espada? Numa entrada de rompante, aprendemos que "(u)m dos mais difíceis temas de Verão é o da influência da temperatura no código de vestuário". Qual guerra na Geórgia, ou a crise económica internacional que traz a reboque a recessão, ou a desaustinada criminalidade violenta que monopoliza noticiários, ou a medíocre prestação dos atletas olímpicos mais a tempestade que isso causou, uma espécie de introspecção da nacionalidade? Depois, o paladino de um certo British way of life junto da boçal portugalidade desfia as condições exigentes em que os fleumáticos lordes são autorizados a frequentar o clube desprovidos de gravata e, nos raros dias de canícula nas ilhas britânicas, até sem o bom amigo casaco. Um acto de generosidade que a tradição admite. Mas é aí que a generosidade encontra os seus limites. Para que não haja dúvidas, ou tentações para estender a excepção, as regras são claras: "nestas excepcionais ocasiões, os cavalheiros sem casaco devem usar camisas de manga comprida abotoadas no punho. E (…) «T-shirts e outras camisas sem colarinho, mesmo quando usadas com casaco, nunca são permitidas no Clube»".
Enganei-me quando pensava que o risível estava no seu auge. Espada conta que decidiu promover um "inquérito" para tomar o pulso às razões do dressing code. Tropeçou no barman grego radicado em Londres há longos anos. À pergunta "por que razão devem os 'gentlemen's clubs' dar tanta importância ao código de vestuário?", o bom homem teve uma resposta de uma simplicidade desarmante: "(p)orque, caso contrário deixariam de ser 'gentlemen's clubs'". A outra inquirida foi uma esbelta búlgara que trabalha na recepção do clube. A menina, apesar de estar há poucos meses em Inglaterra, já tinha a lábia toda: "(é) claro, disse-me ela, trata-se de um 'gentlemen's club'".
Moral da história: não se questionam as tradições. Como quem diz, "sim, porque sim". A isto se chama racionalidade em ponto de rebuçado. E mais: o que interessa ao leitor do Expresso o dressing code dessa coisa para nós tão extravagante como deslocada como são os ingleses clubes de cavalheiros? Onde quer Espada chegar? Que a boçal portugalidade devia aprender com este British way of life? Ou é apenas Espada a olhar-se ao espelho e a gostar muito do que vê?
A risível narração do consultor político do inquilino de Belém resgatou-me da sua ausência. Estes pedaços que Espada exporta para a lusitânia são sempre profilácticos: rir, e muito, nunca fez mal a ninguém. Descansem, todavia, alguns dos que mais satirizam a quadratura espadiana: ele há outras tribos que também têm o seu particular dressing code. E não é menos folclórico. Honra lhes seja feita: ao menos não vêm para as páginas dos jornais com um arrazoado de como fazer rastas no cabelo e envergar larguíssimos macacões de ganga, sem esquecer, até no Verão, o indispensável lenço palestiniano.
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