A cada um a sua tenaz sensibilidade. À medida que amadureço na idade doem-me mais as imagens ou narrações de maus tratos a animais. As gratuitas, na sua sórdida estupidez. Como as que somos educados a entender como necessárias – as experiências médicas e farmacêuticas, ou até as experiências feitas pela indústria cosmética. Sem ser um fundamentalismo ecológico ou qualquer coisa parecida: de uma dor de alma se trata, porventura irrisória aos olhos da maioria. Mas não fundamentalismo. As opções pessoais – o semi-vegetarianismo, a dor pungente quando vejo animais vítimas da crueldade gratuita –, guardo-as para mim. Sem as transformar em campanha de evangelização do próximo. Opções interiorizadas.
Há dias li um número aflitivo: o número de animais em cativeiro sacrificados em, dizem-nos, nome da humanidade. Não guardo na memória o número certo. Só sei dizer que eram demais – muito além do que poderia recear no cenário mais fantasmagórico.
Essa cifra angustiante é o banco dos réus onde se senta a humanidade. Da humanidade que não hesita em brutalizar indefesos animais porque convencionou que é a raça superior entre os seres vivos que habitam o planeta. Manifestações de antropocentrismo como estas deviam envergonhar a raça humana. Essas pessoas que passeiam com jactância a superioridade humana, que tem o seu esteio nos dotes de racionalidade de que somos exclusivos portadores, nem sequer percebem a contradição de termos em que incorrem. Quem assim age vê tombar sobre si o diáfano manto da irracionalidade. Não venham com os argumentos que os usos e costumes vulgarizaram: que é a necessidade de proteger a raça humana, de melhorar a sua forma de viver, nas exigências do combate às doenças que a indústria farmacêutica trava pela humanidade, que se encontra o argumento inconcusso para o sacrifício de animais. O problema é que ao entreabrir-se uma porta, à laia de pretexto, depressa as atrocidades sobre animais inocentes se estendem a outros domínios: a indústria cosmética é o melhor exemplo.
Quando escrevo estas palavras, a memória é assaltada por fotografias de indescritíveis brutalidades infligidas a animais em nome da ciência. Nunca as vi por cá, afinal terra de brandos costumes habituada a olhar para o lado quando sobre ela caem os assuntos que deviam prender a atenção. Essas imagens são divulgadas por associações de defesa dos animais em sítios mais civilizados. Lembro-me delas espalhadas pelos corredores do metropolitano em Londres e nas próprias carruagens. E da reacção espontânea de desviar o olhar das imagens que maceravam os olhos, pungentes imagens. Sem conseguir reprimir o ímpeto masoquista, segundos depois voltava a dirigir o olhar para os autocolantes que gritavam uma criminosa indignidade. Tão enjoado como revoltado, fui vendo do que é capaz a sublime humanidade em seu nome. Dei comigo enjoado. Desta inumana humanidade.
Uma incessante contradição de termos. Quem alimenta estas práticas inverte papéis com a vítima. Como se o algoz fosse a besta, capaz dos actos bárbaros documentados naquelas fotografias de animais dissecados, outros mantidos vivos em pleno sofrimento. O algoz mergulhado na animalesca forma de ser. As suas vítimas, nem sequer com o direito a serem animais, subespécies talvez. A revolta e a náusea que me percorriam cristalizavam uma ideia: a civilização é um conceito muito relativo. Se há quem pisa a dignidade de um animal (que, se não é um ser inanimado, tem essa dignidade) de forma tão gratuita, e se existe um pensamento formatado para condescender com essas atrocidades, mal anda a civilização tão avançada em que vivemos. Retardada humanidade.
Já o disse antes: a cada um a sua sensibilidade, tão variável consoante estados de espírito, educação e tantos outros factores. De dentro da minha sensibilidade brotam interrogações: os carrascos que sacrificam animais por estarem convencidos que é em nome de uma causa nobre, não são visitados por fantasmas quando repousam a cabeça na almofada? Por mais enamorados que estejam da ciência e do seu papel salvífico da humanidade na recorrente investigação que se socorre de experiências cruéis em animais, sentem prazer com os maus tratos prolongados nos animais destinados a padecer nas suas mãos?
Se me dizem que o fazem pelo imperativo maior de corresponder aos desígnios da humanidade, chamo-os covardes. Se têm a pesporrência de me dizer que não sentem remorso, o mínimo remorso que seja, começo a acreditar que a maldade é inata à tão superior raça humana. Talvez por isso ela seja tão superior às outras raças animais. No predicado da maldade gratuita.
Sem comentários:
Enviar um comentário