31.8.09

Para que serve uma mandatária?


Era uma vez uma menina que, quando ainda era mais menina, apresentava programas infantis na estação dos betos da linha de Cascais e da Quinta da Marinha. A rapariguinha cresceu um bocado, mas a idade mental terá parado algures no tempo. Agora aparece em profusos outdoors de uma loja de informática e material de escritório, patrocinando as mercadorias com aquele sorriso de plástico das proto-beldades do momento, exibindo o irritantemente eterno bronzeado de solário.


Aposto que a rapariguinha deve seduzir numerosa clientela, pois que até o partido do governo a desencaminhou para ser mandatária para a juventude. Eu diria que a política se tornou cor-de-rosa. Vendo bem, a surpresa não está em lugar algum: o partido em causa é o da rosa, o que combina com a escolha de uma rapariguinha que anda pelos topes da popularidade nas revistas cor-de-rosa. Se dúvidas houvesse acerca da fatuidade da política e dos socialistas que nos governam, a menina Patrocínio como mandatária para a juventude esclarecia-o de vez.


Que pensamento é conhecido à rapariguinha? Nenhum. Corrija-se: até há dias, nenhum. Depois, alguns arautos desse admirável conceito inventado pelo timoneiro da nação – o "bota-abaixismo" – fizeram o trabalho de casa nos arquivos de imagens das estações de televisão. E encontraram uma entrevista pueril na qual a menina afirmava, com enternecedora assertividade, que detesta fruta trabalhosa. A menos que a empregada doméstica lá de casa se desse ao trabalho de retirar os caroços das cerejas e as grainhas das uvas, era fruta que não entrava naquela santa boquinha.


Houve quem muito se ofendesse pela futilidade da menina Patrocínio. Mais para as bandas da extrema-esquerda, logo vieram os preconceitos de classe – a empregada doméstica que não devia ter sido assim chamada, a patetice pegada da menina mimada que foi tão bem educada pelos progenitores que nem se dá ao trabalho de tirar caroços de cerejas e grainhas de uvas (e não se terá lembrado das espinhas dos peixes – ou apenas come douradinhos…). O pior estava reservado para outro momento sublime da entrevista onde a rapariguinha se mostrou desbocada – ou sintomaticamente sincera: preferia fazer batota a perder.


Recuo aos nada bons velhos tempos do estágio de advocacia. Na linguagem técnica do meio, os advogados eram chamados "mandatários judiciais". A etimologia ajuda: mandatários, por estarem mandatados pelos clientes para actuarem em seu nome. Um mandatário é isto. Pela sua boca, as palavras de quem representa. A rapariguinha de quem se fala patrocina a causa do partido do governo. Do mal o menos, a infantilidade de confessar os gostos pessoais com a fruta. A outra confissão – antes fazer batota do que perder – é todo um programa de comportamento. Não estranha que no passado fim-de-semana, num acampamento dos jovenzinhos socialistas numa praia do Oeste, a juvenil turba se tenha excitado imenso quando a menina Patrocínio discursou. Se dúvidas houvesse que as juventudes partidárias são um ninho de cobras, um lugar muito pouco recomendável para qualquer jovem crescer como deve ser, o coro de entusiasmo com a presença da menina que prefere fazer batota e perder disse tudo.


Por sinal, ainda nenhum amestrado jornalista perguntou ao "quase engenheiro" se concorda ou se demarca da boutade da mandatária para a juventude. Como mandatária, é a "voz do dono". E como o dono tem prolongado o silêncio sobre as comprometedoras declarações da rapariguinha (ou, dir-se-ia, reveladoras declarações), que se abram as janelas para o adágio que diz "quem cala consente". E se aquela confissão é reveladora, no contexto da simbólica sinecura desempenhada pela estrela de televisão: como mandatária para a juventude, é um ícone. O que os ícones dizem é imitado por quem os adula. Os jovenzinhos socialistas, mais uma imensa turba de admiradores da mandatária, sossegados se ninguém os reprovar por fazerem batota para evitarem perder no que quer que seja. Vão longe. Só de os imaginar futuros dirigentes até engulo em seco. Vamos longe.


No comício montado na festarola dos jovenzinhos socialistas, a mandatária para a juventude botou faladura. Leu um discurso muito técnico, com palavras caras como "recessão", "crise económica" e "retoma". Leu o discurso que alguém escreveu. Quando o comício acabou, a menina tinha instruções para não responder às perguntas dos jornalistas. Sintomático. Lá na seita, já devem ter percebido que se trata de outro erro de casting (ainda se devem lembrar do fantástico cabeça de lista que arranjaram para as eleições europeias e o mau resultado que isso deu). É o que acontece a quem abre a boca e ou entra mosca ou sai asneira. A censura começa lá em casa. E, quando começa em casa, quem os impede de a estender ao exterior?

28.8.09

Johnny Cash, "Hurt"

Da maior indignidade de todas

Falem-me de declarações que selam os direitos do homem – e repitam, em coro angelical, o intangível direito à dignidade da vida. Falem-me de deuses justos e bondosos, como é harmoniosa a sua mão que se pousa em nós. E falem-me de um sentido, um sentido que seja, para uma vida que definha, gritando bem alto toda uma indignidade que se fez reino apodrecido. Sei que são as coisas boas, as memórias consoladoras, as que animam um quadro onde as reminiscências se tecem na sua faceta bela. Sei que é isto que se deve sobrepor ao demais – a um corpo que carrega consigo a doença, desesperançado, amordaçado num sofrimento silencioso. Mas não ficam também arquivadas as imagens pungentes da dor letal que consome um corpo, deixando-o reduzido a uma massa inerte, sem vontade?


Não sei se importa saber se tudo isto faz sentido. Porventura é quando todo o impensável lirismo transpira pelos poros, encharcando a existência presente com uma humidade pegajosa. É quando leveda uma improvável ingenuidade que toma conta do horizonte. Fervilhando uma lancinante interrogação que se mistura com um desejo inverosímil: pudesse um homem escolher a sua morte. Pudesse ele lavrar um outro testamento que fixasse o como da sua morte. Para terminar de vez com a tremenda indignidade de ver pessoas a definharem no tempo, a terminarem apenas como distante imagem da intensidade que foram outrora.


Um testamento imaterial que um qualquer deus, se afinal existisse, teria que atender. Por uma vez que fosse, esse agora arquitectado deus obedeceria à vontade humana. Para asfixiar o sofrimento nutrido por uma dor surda – o sofrimento, a grotesca aleivosia dos putativos deuses que ecoam as tenazes de uma doença insidiosa. Oxalá voltasse a jurar solenemente a declaração dos direitos do homem, suprema impotência ou acidulada utopia quando ajuramenta a dignidade da vida. Mas de que serve a dignidade da vida se não há dignidade na morte?


A violência de ver alguém perder a vontade e a lucidez. De ver o corpo transformar-se numa massa inerte. O presságio da fatalidade que apenas está à espera do dia aprazado em que o corpo deixa de lutar e os olhos se encerram na justiça poética de quem renuncia como acto derradeiro, corajoso e sublime. Um acto de liberdade. Há os crentes de crenças várias que se entregam aos braços de uma qualquer entidade divina, ou de outra coisa qualquer, fiéis depositários de uma existência que se prolonga na sua imaterialidade. O sacrário do sofrimento que se alonga numa interminável morbidez é a caução para a apalavrada dimensão que se desprende da terrena existência? Mas, então, é necessário infligir tanto sofrimento a um corpo já mirrado?


As palavras que se balbuciam num sussurro imperceptível. A energia consumida pela dor, tanta que nem sequer forças se reúnem para verter as lágrimas que se debatem nas secas pálpebras. Os músculos tisnados pela letargia, mostruário da ausente vontade pela cedência às tenazes da doença que irrompeu, triunfante e traiçoeira. O olhar perdido no firmamento que já nem ele se discerne no que quer que seja. As mãos frias, tão paradoxalmente frias quando a canícula estival se abate sobre o dia e a noite. As mãos, a terminação dos braços que se resignaram à derrota no braço-de-ferro fatal. É já um corpo, só. Um, muito distante da frondosa existência que o foi outrora. A convocar, como nunca, as memórias que refulgem essa existência inteira. Como nunca se fizera notar essa sede retrospectiva; só então as pinceladas da sibilina existência se sobrepõem à indigna degradação do ocaso.


Que dignidade está espalhada neste mundo, na espécie que em sorte calhámos ser, quando se nos reserva o definhamento de nós mesmos a tal ponto que já o deixámos de ser – o eu voluntarista, ou eu pensante, o eu todo, inteiro? Não há desmerecimento maior que um ocaso de pungência demorada. Um ultrajante punhal que mata devagarinho e adia o fim assim incerto.

27.8.09

As feministas são frígidas?


Ainda a insistente publicidade ao tratamento da "disfunção eréctil". É intrigante o silêncio das feministas sobre esta campanha que pretende reviver a tonicidade muscular dos membros masculinos entretanto desmaiados. Poder-me-ão dizer: mas as feministas não se interessam por futebol, por que motivo haveriam de ser espectadoras dos intervalos dos jogos que passam na televisão? Eu contraponho: e não se interessam pelo resultado final proporcionado pelo fármaco publicitado nos intervalos dos jogos de futebol?


É sempre arriscado quando nos deitamos em adivinhações, mas arrisco o exercício: as diligentes feministas não gostam de futebol, ou já teriam inflamado as vozes de protesto contra a execrável desigualdade presente nesta campanha. É que a publicidade é orientada para os machos que deixaram de ser alfa, amolecido que está o órgão reprodutor. Uma vez mais, diriam, o insultuoso viés do género. Continuo a adivinhar (pois não vejo telenovelas – e, outra vez, descaio para o estereótipo de género): nos intervalos das telenovelas passa publicidade a medicamentos que combatem a osteoporose?


Persisto na melindrosa adivinhação: se as feministas perdessem o seu valioso tempo a ver jogos de futebol (ó heresia…), deitavam-se que nem leões esfaimados (correcção: leoas) a quem cauciona esta campanha publicitária por se ter o sexo masculino como alvo. Com fúria, passavam por cima de tudo: publicitários, empresas farmacêuticas, canais televisivos, os detentores dos direitos publicitários nos jogos de futebol. Algumas, tão conhecidas pelo fundamentalismo da causa que defendem a peito, iriam erguer o dedo acusador aos meninos mimados que andam aos pontapés na bola enquanto não passa a publicidade que convence os homens diminuídos na sua capacidade sexual a tratarem a disfunção. Se não houvesse futebol, não havia tanto macho viciado no desporto. E talvez pudessem tratar as consortes com a dignidade que não lhes sabem dar.


Tão zelosas com a sua causa, nem perceberiam – caso se atirassem contra esta publicidade – que estavam a disparar um tiro no pé, atropelando os interesses de quem dizem ser representantes: as mulheres. Ontem quis provar que, no fim de contas, a publicidade à cura para a impotência masculina é democrática, pois as mulheres também são destinatárias – arrisco dizer, destinatárias directas – do efeito provocado pelo medicamento.


Cegas pelo fundamentalismo da causa, atormentadas por todos os fenómenos que perturbem a mirífica igualdade de género à força que ambicionam, nem teriam tempo para apreciar os méritos da publicidade (e do produto em si). Por isso me interrogo, no acto derradeiro do exercício de adivinhação, se as feministas militantes não são frígidas? Que não seja mal interpretado, pois já por aqui apresentei abundantes credenciais anti-marialvas. E como deploro aquela mania ainda muito máscula, mesmo entre gerações mais novas (que parece que só aprenderam as belezas de anacronismos bafientos), que faz da mulher um objecto de comprazimento pessoal. Nisto, defendo que é como na dança: são precisos dois para a função. E os dois devem tirar prazer da função. Com esta "declaração de interesses", suponho que estarei perdoado pelas feministas por algum exagero de linguagem. A menos que as feministas sejam mesmo frígidas e lhes não interessem homens de espécie alguma, marialvas ou a sua antítese, pois as hormonas masculinas têm sempre a palavra final. O maldito sexo, que é sempre bom para os machos e raramente para as fêmeas (na adivinhada abstracção da malta feminista).


Como as hormonas delas parecem ter entrado em hibernação, incomodar-se-iam com a publicidade ao medicamento que anuncia o milagroso tratamento da "disfunção eréctil". A ser verdade que cura o mal, o bem que traz faz-se mal aos olhos das frígidas feministas. Andam a ser negligentes com a sua causa. Têm, naquela publicidade, uma rica matéria-prima para trazerem a causa feminista para a agenda mediática. Quem não protesta cai no esquecimento.


Ou, então, as minhas suposições estão todas erradas. E as feministas estão caladas porque andam contentes da vida. Por também terem sido destinatárias (directas) do fármaco que arrebitou os parceiros.

26.8.09

Por que se insiste em publicitar medicamentos para a “disfunção eréctil” nos intervalos de jogos de futebol?


Como podemos escapar à vigorosa maré dos estereótipos? Eles doem, sobretudo quando esbarram nos modismos escolhidos pelas elites bem pensantes. Por exemplo, fica mal arrumar as pessoas consoante o sexo. Hoje fica mal a um varão encher o peito de ar e pavonear tiques marialvas; fica-lhe mal gabar-se de não pôr as mãos nos utensílios da cozinha, ou que a lida da casa é para as mulheres, ou que não muda a fralda ao infante que berra no berço. Um daqueles modismos, tão proclamado aos quatro ventos, é o da igualdade dos sexos.


De modo que hoje já não é de bom-tom dizer-se que "isto é para os homens e aquilo deve ser feito pelas mulheres". Não vão as militantes feministas protestar de forma inflamada. Ainda não se chegou ao ponto de os homens começarem a envergar saias, ou a pintar unhas e olhos. Apesar de artistas da música pop não terem vergonha da andrógina aparência que cultivam e que, consta, faz um tremendo sucesso junto do sexo feminino (o que levaria a especular se as fãs não são lésbicas recalcadas).


Palavra de honra, concordo que os maus hábitos legados por gerações anteriores são anacronismos que merecem ser varridos do mapa. O macho alfa, esteio da família, que chegava a casa cansado da caçada e, depois de enlamear os tapetes com as suas botifarras, esticava os pés no sofá e ordenava à consorte que lhe tratasse do opíparo manjar; o "cabeça de casal" que só tinha orgulho másculo se coleccionasse um punhado de amantes pela geografia limítrofe. Mas, por mais que nos custe, há estereótipos de que não conseguimos fugir. Para mal dos pecados das feministas que querem impor a igualdade à força, nem que preciso seja atropelar cânones da natureza, ainda é o homem que tem o fálico órgão reprodutor que só funciona quando é bombeado de sangue. E como isto é dramático, a avaliar pela campanha publicitária que, nos intervalos dos jogos de futebol, sensibiliza a homenzarrada com dificuldades na função que pode deixar de as ter se tomar aquele medicamento.


(Há uma campanha de sinal contrário, mais discreta, meio escondida nas páginas de jornais: medicamentos contra a extemporaneidade da função – ou, na terminologia técnica que parece ser o véu que esconde um certo pudor vitoriano que nos consome nestas coisas, "ejaculação precoce". Curiosamente, essa publicidade não passa nos intervalos dos jogos de futebol, o que pode ser uma indicação do escalão etário da clientela viciada no futebol que encharca as televisões.)


Eis o duplo estereótipo. Primeiro, a "disfunção eréctil" (outro eufemismo que mascara a vergonha – como se disso houvesse necessidade –, com a palavrosa tecnicidade a trabalhar para arranjar uma expressão que suavize o problema, o da impotência) não atinge as mulheres, por melhores que sejam os esforços igualitários das feministas. Segundo, os homens são o público-alvo da publicidade que entremeia as duas partes de um jogo de futebol na televisão. Os sacerdotes do politicamente correcto andam desatentos. Já deviam ter reclamado contra aquela publicidade. Ela exclui uma minoria – se as mulheres, por frequentarem em menor número os campos de futebol, para o efeito puderem ser consideradas minoria.


Forçando o prisma, até se entende o silêncio dos penhores da sagrada igualdade: assim como assim, os jogos de futebol que cativam aos homens (acredita-se, sobretudo aos afectados pela "disfunção eréctil") mais atenção do que as consortes, enfim com alguma utilidade. Os varões podem tirar partido dos intervalos dos jogos e obter receituário que lhes consinta a satisfação de um dos deveres conjugais. O futebol passa a ter serventia para as mulheres, mesmo para as que tantos ciúmes dele têm, pois os consortes tratam melhor o futebol do que as senhoras que esposaram nos bons velhos tempos. E assim teríamos o futebol, em comandita com a prestimosa indústria farmacêutica (a ordem dos factores é arbitrária), a contribuir para a harmonia familiar. Uma segunda lua-de-mel para gente de meia-idade, outra vez intumescido o membro condenado à flacidez não fosse o milagroso tratamento da "disfunção eréctil".

25.8.09

Vox populi – não há quem a abafe?


Dizem que a democracia é o povo que ordena e os eleitos (por ele, povo) que governam. A teoria ensina-se desta maneira: a soberania é popular, o poder reside no povo, na convicção de uma mirífica igualdade. Mas é incongruente pensar que o povo – todo o povo – possa exercer o poder. Estaríamos mergulhados na anarquia, com o sentido negativo que as convenções pespegaram no termo – continua a teoria estabelecida. Por isso existe delegação de poder. Do povo nos governantes, eleitos para nos representarem. A democracia deve-se aproximar o mais possível do seu natural detentor. Daí que se discuta se a democracia deve ser representativa ou directa (ou, para alguns saudosistas de um império que ruiu vai para vinte anos, "popular").


Ainda com o estigma do salazarismo à perna, a sagração da democracia é feita todos os dias e as assombrações totalitárias dominam o quotidiano. Tal como se ainda houvesse o risco de resvalar para uma ditadura como a que nos oprimiu durante quarenta e oito anos. Todas as manifestações de "democratização" merecem aplauso obrigatório – ao menos por aqueles que habitam no lugar-comum do "politicamente correcto", os pastores do sistema central (referência a "bloco central") e os que reivindicam o exclusivo da democracia sem a saberem praticar por antinomia ideológica (as extremas-esquerdas).


Por estes dias de selvática concorrência entre os canais televisivos, a voz do povo destilada através de microfones é um dos esteios da qualidade e da intensidade da democracia. Por tudo e mais alguma coisa as televisões saem à rua e perguntam pela opinião do povo. Na sua variante mais recente, proliferam "tribunas abertas" em rádios, televisões e jornais onde o cidadão anónimo opina. É quando o disparate exala por todos os poros. Sempre ouvi dizer que o maior ignorante de todos não é aquele que é apontado por todos como tal; é o que se julga imensamente inteligente, sem dar conta da profunda ignorância em que vegeta.


Multiplicam-se os exemplos da voz popular que agride os sentidos. Andássemos atentos, a anotar todos os dias o relambório de falta de instrução de gente que tem os seus "cinco minutos de fama" na comunicação social, e tropeçávamos em matéria farta. Por ser fresco – e por ter sido o mote para este texto –, um exemplo recolhido ontem. Depois da catástrofe numa praia algarvia, com o desabamento de um leixão que matou quatro pessoas da mesma família, as televisões andaram em areais debaixo de frágeis falésias. A perguntar aos temerários banhistas (ou, dir-se-ia, irresponsáveis banhistas?) se não tinham receio que o mesmo lhes acontecesse.


Da amostra de gente que abriu a boca para o microfone, as respostas variavam: i) um estava consciente do risco, mas isso só acontece aos outros (versão "irresponsável em acção"); ii) outro nem sequer sabia que aquela arriba era perigosa, e outro nem sequer sabia da tragédia (versão "estou a leste do paraíso"); iii) havia uma senhora, muito senhora do seu nariz e das certezas que cuspia para o microfone, a debitar o seu laudo: como só estava uma placa que avisava para o perigo do local, não era proibido ali estar. E rematou: se fosse tão perigoso estar naquele sítio, o Estado devia proibir o acesso à praia (versão "imbecil de serviço"). Esta anónima levou a palma na exibição de supina ignorância. A pesporrência da senhora pôs-me a adivinhar se ela não seria daquelas vozes de protesto caso, um dia destes, o sempre interventor Estado decidisse vedar o acesso à praia. Daquela gente que vitupera a interferência do Estado e depois, quando se dá uma tragédia, se atira ao Estado porque se fosse mais pródigo em proibições a tragédia não tinha acontecido.


A fecunda voz popular é o termómetro da abundante agnosia dos detentores do poder. Correndo o risco de arrostar o rótulo de anti-democrático, eis uma profecia que corresponde a um pessoal desejo: que as televisões tenham pudor. E calem esta absurda e tão burra voz popular. Tenho a impressão que a democracia não se ressentia. E tinha um bónus adjacente: varrer a indigência faz bem à sanidade mental.

24.8.09

Infinita tristeza


O olhar, perdido no firmamento, como caução de um mundo já ausente. Nesses olhos marejados embebe-se a profunda, infinita tristeza. Já só desesperança. E, contudo, nos olhos que retêm as lágrimas empareda-se toda uma existência, como se neles estivesse às avessas uma tela onde passasse a sagração de uma vida inteira.


Como é penoso ser testemunha da tristeza que mareja naqueles olhos. Reféns de uma melancolia pungente, selam a cedência perante a arrebatadora força que fora incapaz de vencer. O cansaço tomara o seu altar, vergando as forças agora exangues. Há naquele olhar petrificado um imenso livro aberto onde acampam as dores que não são gritadas. É como se um sofrimento inteiro se enquistasse naquele olhar perdido no distante horizonte, algures onde porventura já nem sequer um horizonte qualquer é discernido pelo olhar.


Diria que os olhos que se encharcam de lágrimas contidas já só se perdem na ausência de tudo. Opacos pelas lágrimas que lhes retiram expressão; mas, ao mesmo tempo, translúcidos pela tristeza que transportam. Translúcidos, como se por eles todos os gritos aflitivos de sofrimento – todos os gritos que soubera reprimir – soassem no olhar marejado. Naquele olhar que transpira lágrimas da tristeza.


Que pensamentos vagueiam detrás daquele olhar petrificado, que só não é inexpressivo porque dele escorre a infinita tristeza? Uma lamentação, ou o perjúrio de jamais ser o que fora outrora. Matéria inerte a que apenas os olhos que são sacrário da melancolia consentem alguma expressividade. É naqueles olhos perdidos no firmamento que se parece resguardar ainda alguma lucidez, ainda alguma altivez disfarçada na tela para lá da tristeza. Neles, a na tristeza que albergam, toda a impotência de reverter o tempo, um braço-de-ferro derrotado. O impassível declínio, contra o qual as esvaídas forças já nada podem, arremete com a ultrajante violência que se abate num corpo domado. O que ainda sobra de dignidade fervilha no ensurdecedor silêncio dos olhos que ecoam uma tristeza ímpar.


Não houvera lamentações escutadas quando podiam ser gritadas com a mesma força do sofrimento que o consumia pelas entranhas. E agora, mercê dos olhos imóveis no longínquo e indiferenciado horizonte, parecia que as lamentações soavam, tão audíveis, no silencioso olhar testemunha de tanta tristeza. Todas as lágrimas que os marejavam valiam pelas palavras outrora reprimidas, as palavras que haveriam de ser ditas em rima com a tanta dor suportada. E mesmo as lágrimas que enchiam os olhos não se vertiam, como se fosse o derradeiro fulgor de toda a coragem amealhada. Nem as lágrimas contidas dentro do olhar aspergiam um sentimento que fosse, todos eles abrigados na continência do olhar remetido à infinita tristeza.


Uma vez mais, pela última vez, queria poupar os demais do sofrimento dilacerante. Só não conseguia reprimir o olhar onde se acantonava a tristeza que as forças já desfalecidas não deixavam esconder. Aos outros, à volta, sobrava a tremenda impotência de nada poderem fazer. Na impossibilidade de revertem os tentáculos que adornavam aquela tristeza, no gélido silêncio que se apoderava do demorado olhar que se perdia no firmamento, algures onde nidificava toda aquela tristeza em que os olhos repousavam. Restava-lhes serem testemunhas da infinita tristeza que o consumia. Coabitarem nessa melancolia, para que ao menos não a sentisse no ainda mais doloroso isolamento.

21.8.09

Contra narcisista, ou narcisismo ao contrário?


Há por aí uns personagens que transpiram carradas de narcisismo e que treparam ao estatuto de pessoais embirrações. Só encontro uma explicação: por trazerem atrás de si todo aquele narcisismo, um convencimento agreste que se esbofeteia em todos os demais, os coitados que não chegam para sequer morder nos calcanhares de quem exibe tamanha bazófia. Este é dos defeitos da espécie que mais me incomodam. Se não se lhes pode recomendar que desapareçam do mapa, ao menos que tomem um banho de humildade para refrear tanto narcisismo.


(Algumas narcísicos que me ocorrem, com o encantador Mourinho a liderar este particular campeonato: o grande líder da pátria, o rapaz a quem o galardão de melhor futebolista do mundo parece ter produzido efeitos adversos, o patético primeiro-ministro italiano, alguns operários de artes diversas que arrogantemente desfilam a fama, gente que anda pela ribalta efémera e que se passeia na rua com o nariz espetado ao alto, com aquele olhar de desdém que parece selar uma fátua superioridade.)


O contraponto: dirão que a implicância com os narcisistas se deve a inveja. Ou à má convivência com a fama que os arrogantes adquirem, por me ser doloroso sabê-los imersos em tanto sucesso. Seja o que for, esta gente vaidosa que alardeia em público os seus elevados dons revolve-me as entranhas. Sabemos que Mourinho se acha o melhor treinador do mundo, e que ninguém cala a prosápia de Cristiano Ronaldo. Já não é tão certo o estatuto que este primeiro-ministro a si chama quando assegura que os ventos da democracia nunca sopraram um timoneiro tão venturoso quanto ele. Ou que Lobo Antunes sobe aos tamancos da reputação de escritor para destilar o seu auto-convencimento. Sabemos tudo isto. A tal ponto que é dispensável, por serem cansativas, tantas exibições de narcisismo com que andam pela praça pública.


Desconfio que os narcísicos tiveram infâncias ou adolescências atormentadas. Se calhar eram alvo da zombaria dos outros. O estrelato é um acerto de contas com os recalcamentos de antanho. Só que os demais, que não os conhecem desses tempos, não têm culpa dos recalcamentos. Escusávamos tanta grandiosidade pessoal esbofeteada à exaustão, sempre lembrando do luminescente estatuto de que gozam em contraste com a mediocridade onde os anónimos vegetam. Não sei o que me azoa mais: ver os Mourinhos darem à costa e, com jactância, bolçarem "eu sou o maior", ou ver o respectivo séquito confirmar o estatuto, aplaudindo com notória acefalia.


De tudo isto, uma introversão: noutro registo, divirto-me com a altivez de alguns colegas que puxam lustro às credenciais académicas. Fazem gala do "professor doutor", complemento obrigatório da assinatura que sai do punho e, julga-se, argumento definitivo de autoridade. É uma derivação de narcisismo. Também aqui se pode contrapor: mas esses "professores doutores" afinal não são professores doutores? Não terão direito a engalanar o nome com o título na correspondência que assinam, nos cartões de crédito e de débito que os bancos distribuem, no tratamento pessoal que exige a apensação da credencial académica?


Inclino-me a responder que se trata da mesma jactância dos narcísicos. Só mesmo por cá (ou em terras onde o formalismo se sobrepõe à substância) para exigirmos que nos levem tão a sério quanto as credenciais deste género fazem supor. Só que então noto o seguinte: se disser que não assino com o título académico, que não exijo esse tratamento nem nas relações profissionais, ou que os cartões bancários só têm o nome do registo civil, não estarei a ser narcisista ao contrário?


Isto faz-me lembrar a dança descompassada entre a vaidade e a modéstia. Só que a falsa modéstia é, lá no fundo, uma exibição (disfarçada) de vaidade.

20.8.09

Um bocado de corpo no meio de tatuagens (outro fresco estival)


As tatuagens que de ano para ano enxameiam cada vez mais corpos e corpo distraem uma distracção. Passo a explicar. A vista arregala-se com corpos – e, se me é permitida a confissão heterossexual e, juro, nada marialva, a observação restringe-se aos corpos femininos. É na praia que os corpos estão mais próximos da sua natural nudez. Não é por pudor que desvio o olhar de esbeltos corpos femininos. Não vou ao ponto de fazer disto um passatempo que muito me aproximaria de um voyeur a carecer de tratamento psiquiátrico. Aliás, o mal de ir à praia e estar cercado de corpos com muita nudez à mostra é que de tudo se vê. Tanto os olhos se deleitam com corpos esbeltos como notam a agressão visual do seu contrário.


Continuo a explicar por que razão as muitas tatuagens distraem a distracção obsequiada pela temporada estival. A tinta das tatuagens e os múltiplos desenhos que ornamentam os corpos distraem a atenção dos olhos para os enfeites que os artistas do género espalham pelos corpos. Ou seja, os olhos fitam a profusão de tatuagens em vez dos corpos. Volto ao de há pouco: nem sempre a distracção das tatuagens é coisa má. Naqueles corpos de adiposidades abundantes, as tatuagens são um bálsamo. Os olhos focam a tatuagem e distraem-se do corpo disforme – é o que dá quando um detalhe desvia a atenção do conjunto.


Todavia, as tatuagens têm desvantagens. Primeiro, as tatuagens que ornamentam graciosos corpos femininos retiram a atenção aos corpos em si. Já não há mister de apreciar o dom da natureza com que certas mulheres foram agraciadas (um crente corrigir-me-ia: o atributo divino, não o dom da natureza). Um corpo aprumado fica escondido pelo detalhe de uma tatuagem. Outra vez: os olhos focam-se no pormenor do desenho que evaporou a naturalidade da tez e perdem a harmonia das formas do todo. Segundo, as tatuagens desviam o olhar para corpos masculinos. Não é o corpo masculino que cativa a atenção; é a tatuagem que aparece num corpo de um homem e que actua como íman para a vista, forçando-a a um desvio de trajectória que outrora não estava programado na mente. O heterossexual orgulhoso (não confundir com um qualquer marialva apatetado) sente-se contrariado.


Longe de mim censurar as tatuagens e assinar por baixo o desvario (outro) da ASAE, que há tempos quis meter a pata proibicionista na feitura de tatuagens. Isto como mote para a terceira contrariedade das tatuagens: a questão estética. O que vem a seguir é uma verdade muito pessoal, tão relativa como todas as verdades – e tão relativa como os padrões estéticos que povoam os gostos individuais. As tatuagens desfeiam os corpos. Há-as muito pequenas, não sei se sinal da timidez de quem as quis colocar numa parte quase escondida do corpo. Há-as em partes – como direi? – sugestivas do corpo: junto ao umbigo ou, a que tem a minha preferência, nos fundilhos das costas. Como há quem cometa a ousadia de ordenar aos artesãos a injecção de fartas doses de tinta que resultam em avantajadas tatuagens. O produto final é algo que em mim causa confusão: a perenidade do desenho que toma conta do lugar onde antes estava a naturalidade da epiderme.


Por fim, outra consideração estética que não abona em favor das tatuagens. É um estereótipo de futebolistas e de artistas de duvidosa estética. Outra verdade com o peso da sua relatividade: uns e outros, gente pouco recomendável como ponto de mira estético. Mas, lá está, nisto dos gostos o que embeleza a riqueza do mundo é a relatividade das preferências.


Daqui apenas protesto um egoísmo: as tatuagens desviam o olhar das maravilhas da natureza que resultaram em certos corpos femininos. O resto – a duvidosa estética, a perenidade das tatuagens, o embuste dos hieróglifos chineses e árabes que escondem mensagens que apenas interessam a quem ostenta a tatuagem (o que me divirto a pensar como esta gente pode ser enganada ao acreditar que os hieróglifos significam uma coisa quando afinal significam outra muita diferente) – fica com que tem a coragem de as fazer, as muitas e fartas tatuagens.

19.8.09

A tecnologia desumaniza?


Aos cientistas e visionários, um grande bem-haja. Fazem o mundo avançar. Das invenções que dão a conhecer, a regra de serem virtuosas para a humanidade. Por estes dias, os avanços tecnológicos cavalgam, imparáveis e a uma velocidade vertiginosa. Nas tecnologias de ponta, uma inovação está destinada à efémera condição. A obsolescência espreita ao dobrar de cada esquina. O que ontem nos deixou boquiabertos depressa se transforma em sucata.


Eu adoro as conquistas da tecnologia. Dependo delas. Empenho-me em saber o que está aí a rebentar, a próxima conquista saída de cérebros inventivos que manobram nos interstícios da, para mim, insondável tecnologia. Por exemplo, quem desdenha das vantagens da Internet? Dizem os seus defensores: agora fazemos a partir de casa numerosas coisas que dantes obrigavam ao incómodo de uma deslocação até ao sítio onde esse serviço era prestado, com o desconforto das filas de espera e da antipatia dos funcionários que nos atendessem.


Há quanto tempo não vamos a um balcão de um banco? É tanto que nem posso assegurar se a Caixa Geral de Depósitos continua presa ao estigma da função pública (tão semelhante era o tratamento que o utente recebia num serviço público ou naquele banco). Podemos comprar férias sem ter que aturar a prosápia do comercial da agência de viagens. Podemos comprar bilhetes de avião, que até ficam mais baratos se forem adquiridos online. Já não são precisos mapas de papel: há vários sítios na Internet que oferecem mapas cheios de potencialidades que os tradicionais mapas desdobráveis não conhecem, traçando rotas que nem ao distraído deixam lugar à desorientação. Hoje soube: há um mapa que nos mostra, com fotografias, como são as ruas que esquadrinharmos. Até a comunicação entre pessoas se transformou. As "redes sociais" põem-nos a comunicar através da escrita, não através da fala. Parece que já não queremos escutar vozes, melodiosas ou medonhas, mas vozes, um timbre de humanismo. E parece que nos refugiamos no conforto da Internet, dentro de casa, um esboço de sedentarismo e de ensimesmamento.


Não sei se este é o preço a pagar pela galopante tecnologia. Têm uma capa de virtude, as muitas facilidades legadas ao utente da tecnologia. O reverso da medalha é, dizem uns quantos, a desumanização das pessoas. Quem faz coisas em casa quando outrora estava habituado a fazê-las na rua contacta com menos gente. Logo, essa pessoa fica menos gente. Para os críticos da voracidade da tecnologia, as vantagens dissipam-se na sua opacidade. Confinados ao comodismo da residência, é como se a transformássemos na caverna de onde pouco saímos. Pegando na retórica dos que protestam contra o embrutecimento da tecnologia, somos os novos homens das cavernas, tão bichos mergulhados no umbigo do nosso isolamento.


Haverá sociólogos, até psicólogos, entretidos com a análise do cenário? Se os críticos forem levados a sério, a mesma tecnologia que nos facilita a vida é a que nos dilui a humanidade. Ou, se não houvesse apenas comicidade nos profetas da desgraça agarrados a mirabolantes teorias, dir-se-ia que se trata de uma conspiração de robots. São as máquinas que nos oferecem, numa bandeja cheia de invisível cicuta, proveitos que maceram a humanidade e nos transformam em robots.


Eu não acredito em teorias da conspiração. Encaro as efabulações espalhafatosas como diversão – exercitam os músculos faciais que soltam o riso. Entre as profecias da desgraça e o comodismo da tecnologia que avança, supersónica, prefiro a segunda. Nem que digam que nos estamos a desumanizar.

18.8.09

Colourbox, "The Moon Is Blue"

Lua misteriosa?


Musa de poetas e músicos. Inspiraste fantasias ímpares. Houve quem te sagrasse como mistério, a mítica atracção terrestre – como se os termos da equação se invertessem e fosse a lua a centrípeta força e a Terra abandonada à condição de satélite. Houve quem, cultor de teorias da conspiração, desconfiasse da ciência e jurasse a pés juntos que jamais o homem havia pisado o solo lunar. Afinal, ó lua, onde guardas o teu mistério?


Dirão uns: é das suas múltiplas personalidades. Lua cheia, quarto minguante, lua nova, quarto crescente, mais as mutações intermédias. As diversas caras que a lua mostra ao paternalista planeta de que depende. E nós, daqui em baixo, contemplamos a esquizofrénica lua, extasiados. Invejamos as múltiplas personalidades lunares, cansados por certo da personalidade que calçamos.


Talvez o mistério da lua esteja no hipnotismo que em nós semeia. O ar contemplativo que pomos quando nos deixamos enfeitiçar por uma das caras da lua. Dizem que o mistério – e o encanto – maior acontecem quando a luz mostra toda a sua grandiosidade espelhada na lua cheia. Dir-se-ia que o tempo se paralisa enquanto admiramos o feixe de luz incandescente que brota da lua tão grande que se esbarra na pequenez da Terra. Outra vez as coisas imersas nos seus paradoxos: seria a Terra atraída pela gravitação lunar, desmentindo as lições dos astrónomos.


Talvez seja isso: o encantamento enquanto fitamos a lua cheia que invade a escuridão da noite. Alguns já lhe chamaram o sol nocturno. Há quem teça loas à resplandecente luz alva que dela emana. E quem veja azul no feixe de luz que a lua irradia. As fantasias emparelham-se com a infinita imaginação humana. Lobisomens, ou coisas que só acontecem quando a luz se põe cheia, ou catástrofes que vão acontecer no eclipse lunar – mesmo que depois a realidade venha desmentir a verificação dos cataclismos teorizados por um saber fantasioso. Daqui a uma interrogação que não pode esperar: dedicamos tempo excessivo à lua, na sobrevalorização do seu papel que não deixa de ser o de um satélite que gravita em torno de nós?


Ocorre-me uma explicação: o eterno cansaço do que somos, ou donde estamos. Aprisionados pelo que somos. O local onde estamos acantonados, o cárcere que impõe os nossos limites a uma certa pequenez. A lua, a inacessível lua, um prometido, sonhado destino de libertação dos espartilhos da rotina que asfixia. O olhar projecta-se para o alto céu onde nidifica a lua. É a lua que deposita os sonhos, as fantasias da gente fatigada daquilo em que se tornou, ou fatigada do sítio que se transformou em sua prisão. E os pensamentos descolam do ser e voam na direcção da lua, da desconhecida e talvez por isso tão atraente lua. Só o corpo fica preso ao chão. O pensamento escapa-se, atraído pelo magnetismo da lua que, lá do alto, exerce uma misteriosa força centrípeta. Eis o sentido de uma expressão idiomática que tão bem conhecemos: "andar com a cabeça na lua".


As metáforas tecem-se nos seus múltiplos significados construídos. Por quem as edifica e por quem nelas mergulha como seu hermeneuta. A lua é de um terreno fértil para as metáforas. Seja esse o seu equinócio com o consagrado mistério que a envolve. Mas a lua é apenas o satélite que gravita em torno do planeta de onde tanta fantasia se elabora. Tenho a impressão que também aqui a ciência desmonta todas as singulares efabulações que terminam em metáforas mil.

17.8.09

Enviesamentos


Há gente muito vesga. Como, pelos dias correntes, é abundante a indigência mental e a distracção das audiências, os enviesamentos aparecem com desfaçatez. Dizem-se as maiores barbaridades e a caravana continua a passar, impávida. Somos mesmo convencidos que uma mentira contada à exaustão se converte em verdade. Se, pelo caminho, fica um rasto colorido de desonestidade intelectual, há uns bombeiros de serviço que varrem os prejuízos. Atirando mais combustível para a fogueira dos enviesamentos.


Um dia destes, resplandeceram de esperança os olhos do grande líder (e, por arrastamento, do séquito): as últimas estatísticas anunciaram uma envergonhada recuperação da economia – uns míseros 0,3%, terá sido o aumento do PIB. Como estamos em vésperas de eleições, normal seria que quem se propõe a pedir a renovação do mandato quisesse demonstrar a bondade de quatro anos de governação. Com os amadores instalados no governo, o que conta é prometer um ror de coisas improváveis que adoçam a boca do eleitorado. Como se os últimos quatro anos não tivessem contado para nada. O que a trupe socialista pede é que se ponha a zero o conta-quilómetros parcial. A seita do PS dá o embalo necessário, a crer pelo que julgam ser o direito divino de se perpetuarem no governo.


O grande líder era contentamento pelos poros. Lavrou sua sentença: a crise está a terminar. Quis que lêssemos os dados estatísticos desta maneira: não fosse a magnífica política económica do governo e não seríamos dos poucos países europeus a registar um franzino crescimento económico. Errado estava o seu ministro das finanças. Ele dissera, há uns meses, quando a crise cavalgava todos os dias, que a política económica já se fazia pelas estrelas.


Só que não há coisas boas que sejam eternas. No dia seguinte o grande timoneiro acordou, todo contente, tão excelente primeiro-ministro se confirmava. Umas horas depois, outro dado estatístico, desta vez com um terrível sabor amargo: o desemprego continua a aumentar e trepou para lá da (na expressão de um sindicalista) "barreira mítica" dos quinhentos mil desempregados. Não há direito – terão exclamado o grande líder e demais corte. Nem vinte e quatro horas para se vangloriarem com o raquítico aumento do PIB e aterra uma péssima notícia. Tinham que preparar a retórica de expiação de culpa. Amadores como são, nem sequer foram ao baú da imaginação retorcida para iludir as gentes. Foi o primeiro argumento à mão de semear: o desemprego aumentou, mas aumentou menos do que nos outros países (acto número um); e aumentou por causa da tremenda crise internacional (acto número dois).


O amadorismo distorce o julgamento – ou o enviesamento é mostruário da indigência mental de quem o pratica. O número de desempregados já superou quinhentos mil? Pois, mas nos outros países europeus é ainda pior. O nosso mal é superado pelo mal ainda maior dos outros. Devíamos perguntar ao primeiro-ministro se também devemos festejar os números do desemprego. Depois, o grande líder sacudiu a água do capote: lamenta informar que o desemprego aumentou por motivos alheios à sua vontade. Foi a abominável crise que empurrou os números para além da tal "barreira mítica". A crise, a crise das costas largas.


Eis o enviesamento. Uma notícia boa é prova da excelente governação. Uma má notícia que se lhe segue é prova dos efeitos contagiosos da crise internacional, contra a qual nem um governo habilitado (o que não é caso) consegue remar. Tirando alguns que não comem tudo o que lhes tentam meter goela abaixo, a maralha ouve, come e cala, convencida. Que não me atraiçoe a memória: não foi bandeira eleitoral, há quatro anos, a promessa de "inventar" cento e cinquenta mil empregos? Então em que ficamos: a criação de emprego deve-se à política económica (assim virtuosa) e o desemprego deve-se à crise?

14.8.09

O encanto dos mercados tradicionais


Empenho-me em contrariar os laivos de conservadorismo que sobem pelas veias. E, todavia, sempre que vou a um mercado tradicional não resisto ao encantamento apoderado. Ao início, como de costume preocupado com a essência das coisas – e que delas não goteje uma saliva apodrecida pela incoerência – debato-me: é congruente a recusa do conservadorismo com a atracção por mercados tradicionais?


Atalho resposta, que pouco interessam os meandros da semiótica. Se fosse importante desemaranhar a congruência que me consome na espúria filosofia das coisas, diria que o detalhe está na semântica: os mercados são tradicionais porque se dizem tradicionais. E, por aí, incongruência nenhuma. Levada a dor de cabeça que me consumiria através da frágil superfície das coisas, tempo para a sua essência, na sua profunda espessura.


Confirmando que somos hostis à terra onde vivemos, o enamoramento pelos mercados tradicionais reforça a ideia. Por cá, passam longas temporadas sem que visite um dos mercados tradicionais. Quando vou de visita a lugares novos, uma das paragens exigíveis é um mercado tradicional. Se for no estrangeiro a visita é mais demorada, com atenção aos imensos detalhes que a vista puder capturar. Perco-me na idiossincrasia regional – desde a arquitectura do edifício, aos produtos expostos – reveladores das características dos solos e do clima –, à têmpera das gentes. Um mercado é uma enciclopédia viva do lugar visitado.


Eis uma afirmação que cativa olhar de soslaio pelas elites intelectuais: nos lugares em visitação demoro mais tempo nos mercados locais do que em museus. Pode a afirmação expor um tacanho alheamento da cultura, da cultura embebida na sua expressão mais nobre – todo um património genético ali exposto em museus, o historial de um povo ou de uma arte. Advogo em minha defesa: perder-me num mercado local que fervilha a intensidade das idiossincrasias locais não é um testemunho de cultura? Com uma diferença determinante: num mercado entra pelos olhos a identidade de um povo na sua forma presente. Não, como em museus, no seu enquistamento passado, como se de lá viessem até ao presente os traços de uma identidade que se foi formando. Mas de uma identidade que revela o anacronismo das suas formas e cores e palavras.


O que me encanta nos mercados locais é tangente ao paleio dos detractores do capitalismo (o que pode ser surpreendente para um liberal assumido). É um pulsar popular na voz dos vendedores, na informalidade que combina um pouco de caos com o ingrediente da organização que é genético a qualquer mercado. E depois há uma paleta viva, a policromia dos vegetais e dos frutos. Que agora, mercê da fobia organizadora dos regulamentos sanitários da União Europeia, obedecem a uma organização metódica, todos alinhados, retirando um pouco da caótica organização que era privilégio dos mercados tradicionais antes de terem sucumbido à intrusão dos burocratas europeus.


Nas bancas de peixe desfila a numerosa fauna em camas de gelo para retardar o perecimento da sua frescura. Aqui e ali, uns atentados à fobia controladora dos burocratas que se aliaram aos sacerdotes do ambientalismo: espécies ainda em estado juvenil oferecem-se às carteiras dos clientes. Há a azáfama das varinas, enquanto mercam com os clientes e se dividem a limpar escamas e tripas aos peixes que acabam de negociar. Por todos os recantos dos mercados há sempre espaço à negociação – o emblema do mercado enquanto instituição. Não há fórmulas rígidas. Imperam os arredondamentos que favorecem sempre o cliente (nesta altura, viriam os apologistas da diabolização do "capital" apregoar a ingenuidade dos clientes que acreditam que os arredondamentos os favorecem, destilando elaboradas teorias que provariam que isso não passa de uma ilusão).


De repente, no âmago deste enamoramento pelos mercados tradicionais, dou conta que a incongruência não é a que me assustara ao início. Eu, que tenho a mania da repugnância de tudo que soe a "popular", afinal tão encantado pelos mercados tradicionais. Onde o pulsar do "povo" atinge um frémito singular. Não me parece que seja enamoramento por uma manifestação popular. Só pela organização espontânea alcançada na montagem de um mercado tradicional.

13.8.09

“Guerrilha ideológica”


Uns castiços armados ao pingarelho (trajavam capas de um personagem do filme "Guerra das Estrelas") decidiram, pela calada da noite, hastear a bandeira monárquica nos paços do concelho de Lisboa. Derribando a bandeira (republicana) do município. Proclamaram a intenção: agora que entrámos nas comemorações do centenário da república, estes monárquicos dos sete costados avisaram que outras acções do que chamam "guerrilha ideológica" se seguirão – uma espécie de "contra comemorações" do centenário da república.


Logo a seguir, as reacções histéricas (e, porque não, histriónicas) das esquerdas tão penhoras da "verdade" puseram-me num esquizofrénico dilema. Por um lado, a querer dar o braço aos ofendidos republicanos, só para contrariar a patética exibição de uns monárquicos que se lembraram de exercitar essa coisa insólita a que chamaram "guerrilha ideológica". Imediatamente depois, ao ler as reacções das esquerdas penhoras do inamovível republicanismo, que tinham tanto de ofensa como da costumeira sobranceria, apeteceu-me aplaudir a infantilidade dos "guerrilheiros monárquicos".


Ao conceito de "guerrilha ideológica", para começar. Talvez seja sinal dos tempos. Talvez estes castiços sejam tributários daquele modernismo que exorta a liquidação das diferenças entre "esquerda" e "direita". Ou apenas uma terrível confusão de conceitos, pois julgava que "guerrilha" fosse genético das esquerdas – e, entre estas, apenas das que navegam pelas franjas do radicalismo. Julgo ter descoberto outra possibilidade (mais condescendente com os promotores da "iniciativa"): ainda imersos numa pós-adolescente rebeldia, e sendo firmemente de "direita", a acção foi um rebelde protesto contra o establishment dominado pelas influências esquerdistas. Não pude deixar de notar como um grupo que puxa pelos galões do conservadorismo monárquico e que se afirma de "direita" se socorreu de um conceito (guerrilha) tradicionalmente reclamado pela esquerda radical.


Quando os ecos da herética acção (assim vista pelos sacerdotes do republicanismo bafiento) começaram a ser discutidos, saltaram os aduladores do republicanismo protestando contra a heresia. Os socialistas que agora mandam no município de Lisboa sentenciaram o mau gosto da iniciativa e enviaram queixa para as autoridades competentes. Havia ali três crimes: "furto, entrada em local vedado ao público e ultraje de símbolo nacional". Continuei a ler a notícia e entrei em pânico. O crime de ultraje aos símbolos nacionais ("quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido") dá direito a prisão e tudo. Não se brinca com coisas sérias – é a triste ladainha que faz de nós, povo latino, um sorumbático povo que contraria a sua latinidade. Fiquei muito em pânico: recordei as várias vezes em que satirizei, neste local, os símbolos nacionais. Se algum querubim do republicanismo leu um desses textos, corro o risco de acordar numa penitenciária. Até tenho andado com insónias, só de pensar na eventualidade.


Entre as reacções das "esquerdas" senhoras de todas as verdades, o habitual Rui Tavares levou a palma. Começou por uma ladainha anti-betos que, vindo de quem vem, é de estranhar. Quando, em jeito de mote, se atira aos castiços monárquicos assegurando que "[s]e for uma acção de meninos-bem ninguém lhes teme as razões de queixa – que não têm – nem lhes pressente mais ameaça do que a de, na altura certa, os papás lhes arranjarem os melhores empregos", pergunto-me se isto não é o tão ferozmente criticado (por um dos seus gurus, Boaventura Sousa Santos) "fascismo social". Neste caso, "fascismo social" às avessas.


Depois da boçalidade (que nestes arautos do "bem pensar" nunca o é), Tavares articula um raciocínio escorreito para desmontar a diatribe dos, como lhe chama com humor, "guerrilheiros simbólicos". E se mal começou este artigo de opinião, mal tinha que terminar. Quis dar o flanco e abrir a discussão a temas que para a comunidade republicana são tabus (a cor da bandeira; estaria aberto a um referendo sobre a natureza do regime?). Termina com a habitual sobranceria ideológica destas franjas, ao abrir as portas a uma discussão descomprometida, "[c]om civismo e espírito democrático. À boa maneira republicana".


Nisto, lembrei-me das certezas muito assertivas do Prof. Vital. E, de repente, apeteceu-me abandonar a minha repugnância à monarquia para ser um monárquico dos sete costados. Só para mostrar a Tavares que o "civismo" e o "espírito democrático" não são exclusivos dos republicanos.

12.8.09

O Prof. Vital é um cromo


O que leio de Vital Moreira no seu blogue faz com que seja um dos poucos cronistas habituais do Público que não me dou ao trabalho de ler. Esta semana, estendido na toalha em plena convivência com a maralha na concorrida praia, abri uma excepção. Ganhei tema para o texto de hoje.


O Prof. Vital é daquelas pessoas que – se me é permitido, sem ofender os costumes – pratica covardia intelectual. Passo à explicação do conceito. Acoberta-se na enorme aura intelectual que é o lastro de um eminente académico coimbrão, ainda por cima de direito (continuam convencidos que são a elite entre as elites), ainda por cima mais apoiante do "engenheiro" primeiro-ministro do que o próprio. Enquistado nesta autoridade intelectual, debita certezas que não merecem contestação. Não sei se serão vestígios da formatação intelectual dos tempos idos, quando foi indefectível militante comunista e perfilhou as tácticas estalinistas que, como sabemos, recebem de braços abertos a dissidência e praticam a tolerância em relação a quem considera que uma certeza o não seja.


Com um mau feitio incorrigível, sempre que dou de caras com espécimes que alardeiam as suas certezas e as crismam como "a verdade" sinto uma súbita pulsão para a discordância. Pois a discordância pode, ao menos, desanuviar a "rebanhização" (palavra que acabei de inventar e que significa sermos todos conduzidos ao estatuto de rebanho obediente, sem possibilidade de encontrar as mal-afortunadas ovelhas tresmalhadas). Perante tantas certezas e a invocação constante da "verdade", faço questão de ser ovelha tresmalhada no rebanho que o Prof. Vital adoraria apascentar sem dissidências.


Estava a torrar a pele em hora de sol aconselhável quando fui parar à crónica semanal do Prof. Vital. Como tempo é coisa que abunda em férias, abri uma excepção e comecei a ler a crónica do agora deputado socialista ao Parlamento Europeu. É um chorrilho de "certezas" firmes, um vendaval de razão só para o seu lado, uma orgia de "verdades" – como se as verdades se pudessem fixar apenas pelo voluntarismo de quem as idealiza. Alguns exemplos: "[n]ão têm razão os que defendem que o recenseamento eleitoral deveria ser facultativo"; "a verdade é que, se o voto é livre, as pessoas devem estar sempre em condições de poder votar"; "[t]ão-pouco é defensável a liberdade de escolha do local de recenseamento"; "[é] uma questão elementar de verdade eleitoral"; para terminar com o exigível panegírico ao governo, protestando "[c]omo é difícil fazer reformas neste país, mesmo quando (…) elas são claras e transparentes e só trazem vantagens para os cidadãos". (Destaques meus)


Sobre o tema escolhido pelo Prof. Vital, tenho opinião. No essencial, é contrária à do quase senador da república – mas para a divergência talvez contribua a minha ideologia "ultraliberal", pedindo o conceito de empréstimo ao Prof. Vital. Dava pano para mangas a discussão: saber se faz sentido, como agora é exigido pelo admirável cartão único, que as pessoas sejam obrigadas a votar na freguesia da residência. O Prof. Vital, pelo meio das suas asserções indubitáveis, destrói o argumento do voto afectivo no sítio do nascimento (ou, acrescento daqui, no sítio que nos viu crescer desde a infância e durante parte substancial da vida). Porventura o Prof. Vital não tem amigos que prefiram votar por motivos afectivos num lugar que não é o da residência; ou tem-nos, mas a agenda obriga-o a escondê-los, como se fossem incómodos fantasmas no armário. Eu, por acaso, tenho amigos que estão tristes por deixarem de votar onde sempre votaram mercê do maravilhoso cartão único que foram obrigados a tirar. As leis não deviam impor a tristeza aos súbditos, pois não?


Mas a pérola está reservada para o final. Foi isto que me fez escrever este texto sobre as verticais asserções do Prof. Vital. Ao querer demonstrar que o voto no lugar da residência combate a abstenção, fixou doutrina: "[n]ão é preciso nenhum inquérito sociológico para concluir que a abstenção é muito maior do que a média entre os eleitores não residentes no local de recenseamentos". Para que não se esqueça, esta é uma frase escrita por um académico – até porque o cartão-de-visita do cronista é, para além de deputado europeu, "professor universitário" (antepenúltima linha da crónica). Esta frase é um impressionante hino ao rigor científico e à honestidade intelectual. Primeiro, o Prof. Vital determina, com a sua sapiência, que não é necessário gastar tempo e dinheiro a fazer um "inquérito sociológico". Segundo, o Prof. Vital antecipou-se ao imaginado inquérito sociológico e tirou, da sua brilhante cabeça, as conclusões. Ele sabe – porque ele sabe, tal é o lastro da aura intelectual – que a abstenção é maior entre os que teimam em votar numa freguesia que não é a da residência. Pergunte-se-lhe, pois: onde estão os dados?


Será que o Prof. Vital orienta mestrandos e doutorandos com a mesma ligeireza de análise, o mesmo abcesso metodológico? Parece que o estou a adivinhar a esboçar réplica, com o habitual desdém de quem está sentado na cátedra dos infalíveis do intelecto, contrapondo: não há dados, trata-se de senso comum. Nesse caso, o cartão-de-visita – professor universitário – não bate com a perdigota.


(Em Tavira)

11.8.09

Ecos de um silêncio


Numa imensidão nunca dantes visitada. Num daqueles lugares ermos, hostis às pessoas. Lá, onde se idealiza uma espécie de torre de marfim. Clausura necessária. E temporária. Como se fosse monge sem religião. Só para praticar dias sucessivos de silêncio monástico. Uma exigível depuração da fala. Em suspensão os dotes de comunicação, para ir ao fundo do ser com a sede total de descobrir o que o ser de si mesmo andara a esconder.


Para tarefa tão fragosa, silêncio sem remissão. Num silêncio que nem sequer notasse a agitação da natureza. Nem o chilrear de pássaros. Nem as árvores na coreografia destilada pela brisa, a folhagem contorcendo-se enquanto arrimava cima e abaixo à vontade do vento. Só o silêncio. Que, de tão intenso, soçobrasse perante o seu próprio ruído ensurdecedor. Soaria o alarme para o cansaço do silêncio. Só então a voz se soltaria e os sentidos resgatados ao torpor voltariam a tinir todas as bússolas.


Até lá, era como se o pensamento fizesse a sua cura termal. O pensamento lavado nas águas depurativas que nenhum ruído faziam – ou não imperasse a regra do silêncio. Não haveria horas a soar. Os ponteiros do relógio não sussurravam o seu compasso, na lembrança do tempo voraz que se consome numa litania ruidosa. Não haveria vivalma para contrastar a existência. Vivalma para trocar um simples olhar, nem que fosse como prova de vida. Porventura tanto silêncio semearia vestígios de demência. Por vezes, seriam as alucinações a tomar conta das pedras basálticas onde aquartelava o silêncio. As forças haveriam de dobrar os imponderáveis. Uma sobra de lucidez vingava no derradeiro momento, justamente quando o corpo se parecia entregar aos delírios do precipício.


É a ditadura do pensamento. Que se insinua por todos os poros, esgrime a sua espada incomplacente até nas horas do sono. E a ditadura do pensamento exibe uns quantos fantasmas – as ideias que vogam na preguiça mental, as ideias que as convenções mandam dizer serem proibidas. O silêncio das palavras é o archote onde se incendeia a ditadura do pensamento. Nele perece um aluvião de palavras sobrepostas, às vezes sem nexo. Resguardadas nos contrafortes do silêncio que esconde o ser da sua espessura.


Não, o silêncio depurativo não é desconsideração. Não é por cansaço – nem um refúgio do cansaço de alguém. É um refúgio onde a alma se redime do seu próprio cansaço. Nesse exercício há uma aprendizagem de renovação. Uma vez mais: não é por cansaço de dizer as palavras que singram do pensamento. Dessa covardia me quero alijar. Este silêncio é um bálsamo interior. Um convite para derrotar a ditadura do pensamento. A teimosa ditadura do pensamento que até nas horas de sono ecoa bem fundo, como se fosse metal fundente a incendiar as veias.


Neste torpor que é o emudecimento, o corpo desliga-se da terra e com ele flutua o pensamento tão pungente. Pela mão do silêncio, ecoam as frases que deviam ser ditas às pessoas que as deviam ouvir no momento que seria o acertado. No silêncio curam-se os arrependimentos, que perdem a sua espessura, deixam de ser arrependimentos. Nada planifica, este silêncio sombrio. Se há coisa que o silêncio não faz é espreitar debaixo dos lençóis que encobrem o porvir. Essa não é a semiótica do silêncio demorado, militante, cativo de todas as incompreensões alheias.


Estendo as mãos sobre o rosto. Para impedir que o silêncio seja atravessado pela alvorada cintilante que se abate sobre a noite. As mãos cobrem, de um passo só, boca e olhos. Afinal, não é apenas o silêncio que liquida um dos sentidos. As mãos enregeladas pela noite ocultam a visão. A certa altura, já nem o silêncio consegue o retiro de tudo. Pois até o silêncio fere com os ecos que produz.


(Em Tavira)

10.8.09

Frescos estivais


Ir de férias: um mundo inteiro por explorar, a incógnita que traz a equação sob suspeita. No encantamento de lugares apinhados, o sossego atraiçoado. Ouvia um dia destes, junto ao pé da piscina, um veraneante possuído de certezas em amena conversa com outro veraneante que acabara de conhecer: "vir de férias é para descansar, mas não podemos perder alguma agitação nocturna". Escutei aquilo e pensei se a frase não merecia aclamação no troféu dos paradoxos. Depois o veraneante passou a enunciar os lugares algarvios que mereceram a visitação da família, cotando-os como se de uma bolsa de valores se tratasse.


Um dos males de vir de férias é que na praia, na piscina ou no restaurante há conversas alheias que entram pelos ouvidos. Creio que só haveria uma maneira de o evitar: a todo o tempo transportar auriculares nos ouvidos. Ora, os mesmos castiços que apanhei em entretida confabulação aterraram no espaço contíguo à minha toalha no dia seguinte. A troca de cromos virou-se para as residências em que habitavam, para a "pipa de massa" que um deles tinha gasto para remodelar o ninho à sua feição, logo seguida de uma "pipa de massa" ainda maior que o outro tinha desbaratado a fazer o mesmo. Depois a conversa afinou agulha para a carteira de acções que ambos tinham, ao muito que ganharam quando a bolsa estava em alta (e um silêncio ensurdecedor quanto aos prejuízos, agora que a bolsa está numa travessia do deserto). Eu forçava o sono, que não quis chegar. Um mergulho na piscina foi o remédio.


As pinceladas dos lugares preenchidos por gente em férias mostram um quadro enternecedor. Destaco as senhoras que passam encolhendo a barriga. Notável, o esforço dos abdominais em contracção, como se o exercício iludisse as adiposidades que escorregam, flácidas. O elogio vai para as senhoras que não têm preconceitos com o corpo. Aquelas que se entregaram à gula e passeiam, descomprometidas com a consciência, o corpo no estado em que se encontra.


Não é com surpresa que se observa o maior cuidado – ou, pelo menos, as tentativas para dissimular as vergonhas que o espelho patenteia – das senhoras com os corpos. Os homens são negligentes. Envergam as suas fartas panças sem preconceitos. Não os vemos encolher barrigas; pelo contrário, até parece que as esticam como sinal de orgulho másculo. É como mostrar a soberba da mesa farta, as proezas enquanto comensais daqueles que, quando amesendam e fitam a pratada que aterra à sua frente, vê-se a água escorrer pelos cantos da boca. Eu confesso: alguma obsessão com amontoados de gordura que inesteticamente se acumulam à volta da barriga. Obsessão pessoal, concedo. E, ao mesmo tempo, fútil observação.


As férias, nestes lugares onde abundam agregados familiares, são pródigas na vozearia dos petizes em alucinada algazarra. Invejo a energia debitada pela criançada. O mal será meu, que em férias me encontro em tal estado que pareço uma pilha quase sem carga em demanda do recarregamento para outro ano de trabalho quando as férias entrarem no ocaso. É ao contrário com as crianças: vêm para férias incendiadas por um fogo intenso que as alimenta para um alvoroço interminável. É como se andassem um ano inteiro a acumular forças: chegam às férias, longe de casa, e vomitam uma lava incandescente, imparável. É uma força bruta da natureza que se apodera delas.


De braço dado com as crianças que parecem endemoninhadas, outro postal necessário das férias são as reprimendas sonoras dos progenitores. Há-as em diversos registos. Paizinhos que dão primeiro uma estalada e explicam depois a razão – o estilo "torcionário" que daria azo a numerosas queixas-crime caso os vanguardistas da nova moralidade passassem a pente fino as praias e piscinas de aldeamentos turísticos. Paizinhos que abrem os pulmões e debitam todos os decibéis, pondo os olhos de uma praia inteira sobre si. E ameaças de castigos que são todo um programa de comportamento. Um dia destes, aos ouvidos chegou esta preciosidade: "se voltas a fazer isso [não me apercebi do desmando do petiz] ficas sem jantar".


O remédio? Abstrair do que se passa à volta. Que as vozes e gritos fossem apenas um ruído de fundo, muito difuso. Oxalá conseguisse apenas mergulhar na profundidade de um pensamento qualquer. Desligar da terra e alcançar em mim o sossego que é a demanda estival. Mas nem de férias os sentidos se desligam da tomada.


(Em Tavira)

7.8.09

Não me quiseram na tropa!


Não sei se esta é das maiores frustrações que carrego: ter entrado para a lista da "reserva territorial", ter sido dispensado de fazer o serviço militar. Que, naquela altura, era obrigatório. Com uma saúde invejável e sem ter mobilizado uma "cunha" que fosse (naqueles tempos eram determinantes para quem se queria safar da tropa) e nem assim consegui entrar para o exército e cumprir o – dizia-se então – tirocínio da idade adulta que o era para macho que se gabasse de o ser.


A voz popular nas casernas assegurava que um homem só se fazia plenamente homem se cumprisse três desígnios: ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Como isto era sentenciado dentro dos quartéis, fazia sentido adicionar o preceito de todos os preceitos, o quarto desígnio: ir à tropa. Chegou-me aos ouvidos, através de amigos que tiveram a honraria de frequentar quartéis durante alguns meses, que os militares se consideravam instrutores das almas que lhes apareciam na recruta. Treinavam os tenrinhos para se despedirem do imberbe estado em que se encontravam. Era tudo rigores? As palavras de ordem eram ásperas? Um homem que se preze não se incomoda com detalhes desses. Tinham que perceber, os recrutas tão verdinhos, que a equação embrutecida era função de um digno objectivo: fazer deles homens sem rebuço. A barba rija ganhava-se dentro dos quartéis.


Ter ficado à porta da tropa, ainda por cima quando estava quase a completar vinte e cinco anos, foi uma decepção insuportável. A lei deixava que por causa dos estudos fosse adiando a incorporação. Fazia sentido: a contragosto do pessoal das casernas (adivinho), a formação académica tinha precedência sobre a formação militar. Com aquela idade terminaram os pretextos para cumprir o honroso serviço militar obrigatório. O dever da pátria chamava-me. Mentalizara-me que era a idade certa para fazer uma interrupção na vida profissional (que estava a começar) para satisfazer os deveres com o exército – e com a valorosa nação através do exército.


Já tinha interiorizado esta obrigação. Estava ansioso por ser deslocado para seiscentos quilómetros de casa, no quartel de Tavira, onde gente com as minhas qualificações servia o exército no seu necessário treino militar. Estava ansioso por me fazer homem, por fim. É que já tinha vinte e cinco anos e sentia que faltava algo para realizar a masculinidade. Faltava gastar quatro meses da vida, ali já nos interstícios entre os vinte e os trinta anos, a receber a instrução militar que por fim me faria homem pleno. Estava em pulgas: para pegar numa arma pela primeira vez e disparar umas balas no vazio (ou num imaginário inimigo inventado pelas patentes em treino militar). Sonhava com o prazer de carregar a pesada metralhadora G3, orgulhosamente senti-la como herança dos antepassados que a carregaram na guerra colonial – outro emblema do brio pátrio. Queria tanto aprender as técnicas e tácticas que se ensinam nos laboratórios das casernas, pois era meu dever estar preparado para defender a pátria caso a pátria fosse mergulhada numa guerra que ameaçasse a sua existência.


Aquele dia próximo do Natal em que fui consultar os editais com os resultados da incorporação foi um duro golpe na auto-estima. As folhas afixadas mostravam os nomes dos mancebos por ordem alfabética. À frente de cada nome, o quartel e a data em que eram esperados sob pena de crime de desobediência. À frente de alguns dos nomes aparecia a menção "reserva territorial". A estes tinha sido perdoado o serviço militar obrigatório.


Ver o meu nome nesta listagem foi penoso. Um sentimento de exclusão varreu-me pelo interior, foi o terramoto devastador de mim mesmo. E se àqueles que foram incorporados a deserção era crime de desobediência qualificada, que dá lugar a prisão e tudo, interroguei-me: e se aparecesse à porta do quartel e forçasse a entrada, também corria o risco de levar um processo por desobediência qualificada? E agora que não me quiseram na tropa? O que seria da minha masculinidade – ficaria pela metade? E se algum dia a ditosa pátria fosse invadida – ou, hipótese ainda mais improvável, invadisse outra terra – como podia dar um contributo se não tive o privilégio do tirocínio militar?


Ainda hoje sinto que uma parte de mim está fora de mim porque a tropa não me quis lá. O que não pude aprender naqueles intensos quatro meses? Que maus hábitos não tive a oportunidade de cultivar durante a tropa? Agora entende-se melhor a minha alergia ao exército: podem dizer que estou ressabiado porque a tropa não me quis nas suas fileiras…


(Em Tavira)

6.8.09

Fornicai, patrícios


Não sei se é da idade, que a idade traz consigo algum amadurecimento e o amadurecimento cauciona a paciência que outrora andava ausente. Este é o mote para a atitude em relação a campanhas eleitorais. Dantes, desligado do mundo. A demagogia soava tanto a patranha que não conseguia encontrar paciência para as aturar. Mas, por estes dias, deleito-me com a campanha eleitoral. Estes tempos que se avizinham prometem um fartote de boa disposição.


A começar: é fabuloso que o partido mais pródigo em propostas seja o que tem estado no governo. (E que o principal partido da oposição atravesse uma crise de criatividade, tão minimalistas as ideias que tem divulgado.) Até parece que estes quatro anos não foram de governação tão prodigiosa como nos querem fazer crer. Em abono dos actuais governantes: o mercado do eleitoralismo é um manancial sem fim; por mais que um governo ache que muito, e de bom, fez durante uma legislatura, o terreno das ideias de concretização futura é tão fértil que um programa eleitoral é um interminável rol de promessas. Assim como assim, governar é uma obra sempre inacabada.


De todas as propostas que foram dadas a conhecer, a que leva a palma de ouro é a pomposamente apresentada pelo "engenheiro" no dia em que tivemos o prazer de conhecer o programa eleitoral dos socialistas. Por cada infante nascido, duzentos euros em caixa. O "engenheiro" revelou que está muito preocupado com a crise demográfica que amedronta o futuro longínquo da pátria. Ora isto motiva dois comentários. O primeiro em jeito de interrogação: o envelhecimento da população não foi descoberto há duas semanas. Já há mais de uma década que os demógrafos anunciaram o fenómeno. Por que motivo o "engenheiro" e entourage esperaram para só agora, quatro anos depois de terem pegado no leme da coisa, descobrirem o problema – ou uma solução para o problema, ao retardador? Depois os políticos ficam abespinhados quando alguém os acusa do pior que a demagogia contém. Segunda observação: folgo em saber que o "engenheiro" e quem pensa por ele afinal se interessam com o longo prazo. Nada mal para quem, há uns meses, enfaticamente anunciou que a política económica pós-crise seria – e parafraseio – "Keynes, Keynes, Keynes". É que Keynes ficou conhecido por dizer que no longo prazo estamos todos mortos.


Acho a ideia enternecedora. Lá está, mais um dos "desígnios nacionais" que são anunciados com dramatismo, só para ver se conseguem mobilizar a "nação" em força. Em contrapartida, creio que a inteligência dos eleitores nunca foi assaltada de forma tão flagrante. Com esta fantástica proposta faz sentido a metáfora da cenoura e do burro. Espera-se que a malta vá no engodo. Duzentos euros são duzentos euros. Também se espera que saibam que não podem meter a pata nos duzentos euros, que ficam imobilizados numa conta bancária até que os infantes atinjam a maioridade. Isto cheira-me a: i) oportunismo (a demagogia do período eleitoralista); ii) bodo aos pobres; iii) chico-espertismo.


É como se os patrícios fossem convidados a desatar numa fornicação interminável para aumentar a prole. O que motiva três dúvidas: primeira, tenho a impressão que a produtividade nacional se vai ressentir dos esforços reprodutivos. Segunda, não sei se a senhora ministra da saúde achará graça à ideia. Afinal, a reprodução da espécie em imitação dos coelhos exige mais actos sexuais sem a protecção do preservativo, o que pode levantar graves problemas de saúde pública. Terceira, acho intrigante o silêncio da hierarquia eclesiástica. Esta luminosa ideia é um convite à libertinagem da libido, tão em contramão com a quase castidade aconselhada pelos fazedores do catecismo católico.


Estava às voltas com este diamante bruto da demagogia quando me ocorreu uma ideia que deixo à consideração dos politólogos que estudam o fenómeno eleitoral e os sistemas políticos: e se, nos boletins de voto, fosse dada a possibilidade dos eleitores depositarem um voto negativo? Funcionava deste modo: à frente de cada partido, duas quadrículas. Na primeira, a cruz inscrita manifestava uma intenção de voto. Se a cruz fosse colocada na segunda quadrícula, os escrutinadores teriam que descontar um voto àquele partido. Desconfio que se os eleitores pudessem votar com o chicote (conceito que acabei de inventar, mas que não é muito diferente da ideia, consagrada pelos politólogos, de "votar com os pés": votar num partido para não deixar que outro continue no poder) teríamos a receita mágica para combater a abstenção. Os eleitores podiam penalizar nas urnas um partido que se distinguisse pela mais absurda de todas as propostas eleitorais. Seria a vingança contra o assalto à sua inteligência.


Sonhar em voz alta não custa. A simples ideia de ter o boletim de voto entre as mãos e colocar um voto negativo no PS é das melhores maneiras de começar um dia.


(Em Tavira)

5.8.09

Armas


(Um texto carregado de ingenuidade)


O dialéctico das armas. A voz que troa mais alto, a que impõe a razão pela força das balas – uma razão que se escapa a si mesma. Deste dialecto perdi o fio à meada: já não sei se é apenas a estupidez da espécie, ou se é a filmografia de Hollywood (pensando bem: a filmografia de todos os lugares) que promove a suicidária orgia de armas.


Eu, que nunca peguei numa arma – nem sequer armas faz-de-conta – custa-me a entender a adoração de uns e a necessidade de outros por um arsenal que chegava para exterminar a espécie. Às vezes (e a cadência tem aumentado), notícias de crimes hediondos. Um pega numa arma e dispara sobre outro, terminando ali com a sua vida. Às vezes é assim que expiram as desavenças. Um endemoninhado qualquer perde a lucidez. Com a cabeça fervente, e por não ter gostado do encaminhamento da troca de argumentos, toma uma decisão: tamanha afronta tem que ser resolvida com o argumento supremo, uma bala que termina de vez com a ostentação do oponente. Que interessa que o oponente deixe de pertencer aos vivos? E que interessa se a escala aparece invertida: o argumento, que lhe parece "supremo", é de uma indignidade atroz.


Arrependimento algum convence uma consciência amordaçada. O mal está feito e não tem retrocesso. A bala disparada não é como os boomerangs. Se, por acaso ou por destreza do homem do revólver, a bala perfura órgão vital não é só uma vida a lamentar: é a outra vida, a do homem que passeia a covarde coragem da força das balas, também desgraçada. Como pode tão alto gritar a insensatez da força das armas, quando o muito alto preço a pagar pode ser a privação da liberdade provada através do cárcere?


Ar armas são a negação da humanidade – levou-me, num acesso de lirismo, o pensamento à conclusão. Outra pausa para interrogar a conclusão. Que depressa se nega a si mesma: as armas são património genético da história da humanidade. A começar, foram invenção do homem. As sucessivas gerações souberam usar do engenho para aperfeiçoarem os revólveres, que se tornaram mais mortíferos. Não me interessa saber se um revólver vomita uma bala de pequeno calibre ou é tão brutal que despedaça um corpo. O resultado é sempre o mesmo: uma vida que perece no altar do insuportável belicismo servido pela poderosa voz de armas.


Tinha uma dúvida: não sabia se era a humanidade embebida na sua profunda estupidez ou a filmografia de todos os lugares o ingrediente da indústria das armas. O que é que isso interessa? O mal maior está feito a partir do momento em que uma arma é fabricada e fica exposta numa loja e encanta um imbecil que a decide comprar. Alguns, desconfiados com a insegurança que nidifica neste mundo, explicam a compra: é para auto-defesa. E quantas vezes o argumento se retorce e a auto-defesa se transforma em agressão gratuita? Eu digo: as armas existirem é a prova maior da irracionalidade da espécie.


A espiral belicista tem um especial nutriente na filmografia de todos os lugares. Há tiros a mais nos filmes, uma orgia de violência que é a flagrante demonstração do escasso valor que a vida tem. Nos filmes, as balas só são a fingir e os corpos por elas fragmentados só simulam a sua própria morte. O ardil deste mundo faz-de-conta é a armadilha letal. É que, ao contrário dos filmes, as armas da vida real têm balas que esquartejam corpos. O sangue vertido é sangue a sério. Ao contrário dos filmes, na vida real o troar de armas fermenta o choro pela perda de vidas. E, ao contrário dos filmes, não voltamos a ver a mesma cara que num filme anterior tinha jazido às mãos de uma bala sanguinária.


Para terminar, dois lirismos de um só vez: a quem odeia proibições, se acaso lhe fosse dada a oportunidade de lançar mão de uma proibição em jeito de excepção, ela que ditasse a proibição das armas. As fábricas de armamento todas destruídas. Talvez a maior miragem de todas estivesse, palpável, diante das nossas mãos: as guerras, enfim, apenas uma vergonhosa antropologia da espécie.


(Em Tavira)