7.8.09

Não me quiseram na tropa!


Não sei se esta é das maiores frustrações que carrego: ter entrado para a lista da "reserva territorial", ter sido dispensado de fazer o serviço militar. Que, naquela altura, era obrigatório. Com uma saúde invejável e sem ter mobilizado uma "cunha" que fosse (naqueles tempos eram determinantes para quem se queria safar da tropa) e nem assim consegui entrar para o exército e cumprir o – dizia-se então – tirocínio da idade adulta que o era para macho que se gabasse de o ser.


A voz popular nas casernas assegurava que um homem só se fazia plenamente homem se cumprisse três desígnios: ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Como isto era sentenciado dentro dos quartéis, fazia sentido adicionar o preceito de todos os preceitos, o quarto desígnio: ir à tropa. Chegou-me aos ouvidos, através de amigos que tiveram a honraria de frequentar quartéis durante alguns meses, que os militares se consideravam instrutores das almas que lhes apareciam na recruta. Treinavam os tenrinhos para se despedirem do imberbe estado em que se encontravam. Era tudo rigores? As palavras de ordem eram ásperas? Um homem que se preze não se incomoda com detalhes desses. Tinham que perceber, os recrutas tão verdinhos, que a equação embrutecida era função de um digno objectivo: fazer deles homens sem rebuço. A barba rija ganhava-se dentro dos quartéis.


Ter ficado à porta da tropa, ainda por cima quando estava quase a completar vinte e cinco anos, foi uma decepção insuportável. A lei deixava que por causa dos estudos fosse adiando a incorporação. Fazia sentido: a contragosto do pessoal das casernas (adivinho), a formação académica tinha precedência sobre a formação militar. Com aquela idade terminaram os pretextos para cumprir o honroso serviço militar obrigatório. O dever da pátria chamava-me. Mentalizara-me que era a idade certa para fazer uma interrupção na vida profissional (que estava a começar) para satisfazer os deveres com o exército – e com a valorosa nação através do exército.


Já tinha interiorizado esta obrigação. Estava ansioso por ser deslocado para seiscentos quilómetros de casa, no quartel de Tavira, onde gente com as minhas qualificações servia o exército no seu necessário treino militar. Estava ansioso por me fazer homem, por fim. É que já tinha vinte e cinco anos e sentia que faltava algo para realizar a masculinidade. Faltava gastar quatro meses da vida, ali já nos interstícios entre os vinte e os trinta anos, a receber a instrução militar que por fim me faria homem pleno. Estava em pulgas: para pegar numa arma pela primeira vez e disparar umas balas no vazio (ou num imaginário inimigo inventado pelas patentes em treino militar). Sonhava com o prazer de carregar a pesada metralhadora G3, orgulhosamente senti-la como herança dos antepassados que a carregaram na guerra colonial – outro emblema do brio pátrio. Queria tanto aprender as técnicas e tácticas que se ensinam nos laboratórios das casernas, pois era meu dever estar preparado para defender a pátria caso a pátria fosse mergulhada numa guerra que ameaçasse a sua existência.


Aquele dia próximo do Natal em que fui consultar os editais com os resultados da incorporação foi um duro golpe na auto-estima. As folhas afixadas mostravam os nomes dos mancebos por ordem alfabética. À frente de cada nome, o quartel e a data em que eram esperados sob pena de crime de desobediência. À frente de alguns dos nomes aparecia a menção "reserva territorial". A estes tinha sido perdoado o serviço militar obrigatório.


Ver o meu nome nesta listagem foi penoso. Um sentimento de exclusão varreu-me pelo interior, foi o terramoto devastador de mim mesmo. E se àqueles que foram incorporados a deserção era crime de desobediência qualificada, que dá lugar a prisão e tudo, interroguei-me: e se aparecesse à porta do quartel e forçasse a entrada, também corria o risco de levar um processo por desobediência qualificada? E agora que não me quiseram na tropa? O que seria da minha masculinidade – ficaria pela metade? E se algum dia a ditosa pátria fosse invadida – ou, hipótese ainda mais improvável, invadisse outra terra – como podia dar um contributo se não tive o privilégio do tirocínio militar?


Ainda hoje sinto que uma parte de mim está fora de mim porque a tropa não me quis lá. O que não pude aprender naqueles intensos quatro meses? Que maus hábitos não tive a oportunidade de cultivar durante a tropa? Agora entende-se melhor a minha alergia ao exército: podem dizer que estou ressabiado porque a tropa não me quis nas suas fileiras…


(Em Tavira)

2 comentários:

Milu disse...

Ri-me ao ler este texto, pela graça e ironia nele contidas. De facto, em tempos, foi mesmo assim, recordo-me! O meu irmão mais velho, quando adolescente foi um caso sério para educar. Tinha um jeito especial para se meter em enrascadas, não perdia uma oportunidade para andar à bulha e à pedrada! Num azarado dia, até a mim, me fez um grande anho na cabeça, com um calhau que lançou na minha direcção, por brincadeira, pensando que não me acertava! Diz ele! A minha pobre mãe, dele, pouco ou nada conseguia fazer. De maneira que, ao sentir-se impotente perante a personalidade indomável do filho, esforçava-se por aliviar o desespero nas frequentes ameaças com o serviço militar, tendo em conta o rigor e o espírito de obediência que nele é incutido. Pensava ela que a tropa dele faria um verdadeiro homem, para a vida! Todavia, o caprichoso destino achou por bem, que assim não havia de ser! ! E o meu irmão, que já sonhava em ser pára-quedista viu-se livre da tropa graças ao seu olho podre, forma como se referia ao olho direito, que havia sofrido uma valente e feia pedrada nos primeiros anos de escola! Foi uma desilusão para todos. Para a minha mãe, que viu goradas as esperanças de, finalmente, o filho se fazer homem. Para ele, que já se via pára-quedista a caminho de Tancos, e para mim, que me fartava de levar porrada, que também dava, mas menos, por isso andava ansiosa para que sumisse.

Milu disse...

Corrijo: Não foi anho que quis dizer, mas sim lanho.