Numa imensidão nunca dantes visitada. Num daqueles lugares ermos, hostis às pessoas. Lá, onde se idealiza uma espécie de torre de marfim. Clausura necessária. E temporária. Como se fosse monge sem religião. Só para praticar dias sucessivos de silêncio monástico. Uma exigível depuração da fala. Em suspensão os dotes de comunicação, para ir ao fundo do ser com a sede total de descobrir o que o ser de si mesmo andara a esconder.
Para tarefa tão fragosa, silêncio sem remissão. Num silêncio que nem sequer notasse a agitação da natureza. Nem o chilrear de pássaros. Nem as árvores na coreografia destilada pela brisa, a folhagem contorcendo-se enquanto arrimava cima e abaixo à vontade do vento. Só o silêncio. Que, de tão intenso, soçobrasse perante o seu próprio ruído ensurdecedor. Soaria o alarme para o cansaço do silêncio. Só então a voz se soltaria e os sentidos resgatados ao torpor voltariam a tinir todas as bússolas.
Até lá, era como se o pensamento fizesse a sua cura termal. O pensamento lavado nas águas depurativas que nenhum ruído faziam – ou não imperasse a regra do silêncio. Não haveria horas a soar. Os ponteiros do relógio não sussurravam o seu compasso, na lembrança do tempo voraz que se consome numa litania ruidosa. Não haveria vivalma para contrastar a existência. Vivalma para trocar um simples olhar, nem que fosse como prova de vida. Porventura tanto silêncio semearia vestígios de demência. Por vezes, seriam as alucinações a tomar conta das pedras basálticas onde aquartelava o silêncio. As forças haveriam de dobrar os imponderáveis. Uma sobra de lucidez vingava no derradeiro momento, justamente quando o corpo se parecia entregar aos delírios do precipício.
É a ditadura do pensamento. Que se insinua por todos os poros, esgrime a sua espada incomplacente até nas horas do sono. E a ditadura do pensamento exibe uns quantos fantasmas – as ideias que vogam na preguiça mental, as ideias que as convenções mandam dizer serem proibidas. O silêncio das palavras é o archote onde se incendeia a ditadura do pensamento. Nele perece um aluvião de palavras sobrepostas, às vezes sem nexo. Resguardadas nos contrafortes do silêncio que esconde o ser da sua espessura.
Não, o silêncio depurativo não é desconsideração. Não é por cansaço – nem um refúgio do cansaço de alguém. É um refúgio onde a alma se redime do seu próprio cansaço. Nesse exercício há uma aprendizagem de renovação. Uma vez mais: não é por cansaço de dizer as palavras que singram do pensamento. Dessa covardia me quero alijar. Este silêncio é um bálsamo interior. Um convite para derrotar a ditadura do pensamento. A teimosa ditadura do pensamento que até nas horas de sono ecoa bem fundo, como se fosse metal fundente a incendiar as veias.
Neste torpor que é o emudecimento, o corpo desliga-se da terra e com ele flutua o pensamento tão pungente. Pela mão do silêncio, ecoam as frases que deviam ser ditas às pessoas que as deviam ouvir no momento que seria o acertado. No silêncio curam-se os arrependimentos, que perdem a sua espessura, deixam de ser arrependimentos. Nada planifica, este silêncio sombrio. Se há coisa que o silêncio não faz é espreitar debaixo dos lençóis que encobrem o porvir. Essa não é a semiótica do silêncio demorado, militante, cativo de todas as incompreensões alheias.
Estendo as mãos sobre o rosto. Para impedir que o silêncio seja atravessado pela alvorada cintilante que se abate sobre a noite. As mãos cobrem, de um passo só, boca e olhos. Afinal, não é apenas o silêncio que liquida um dos sentidos. As mãos enregeladas pela noite ocultam a visão. A certa altura, já nem o silêncio consegue o retiro de tudo. Pois até o silêncio fere com os ecos que produz.
(Em Tavira)
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