Ir de férias: um mundo inteiro por explorar, a incógnita que traz a equação sob suspeita. No encantamento de lugares apinhados, o sossego atraiçoado. Ouvia um dia destes, junto ao pé da piscina, um veraneante possuído de certezas em amena conversa com outro veraneante que acabara de conhecer: "vir de férias é para descansar, mas não podemos perder alguma agitação nocturna". Escutei aquilo e pensei se a frase não merecia aclamação no troféu dos paradoxos. Depois o veraneante passou a enunciar os lugares algarvios que mereceram a visitação da família, cotando-os como se de uma bolsa de valores se tratasse.
Um dos males de vir de férias é que na praia, na piscina ou no restaurante há conversas alheias que entram pelos ouvidos. Creio que só haveria uma maneira de o evitar: a todo o tempo transportar auriculares nos ouvidos. Ora, os mesmos castiços que apanhei em entretida confabulação aterraram no espaço contíguo à minha toalha no dia seguinte. A troca de cromos virou-se para as residências em que habitavam, para a "pipa de massa" que um deles tinha gasto para remodelar o ninho à sua feição, logo seguida de uma "pipa de massa" ainda maior que o outro tinha desbaratado a fazer o mesmo. Depois a conversa afinou agulha para a carteira de acções que ambos tinham, ao muito que ganharam quando a bolsa estava em alta (e um silêncio ensurdecedor quanto aos prejuízos, agora que a bolsa está numa travessia do deserto). Eu forçava o sono, que não quis chegar. Um mergulho na piscina foi o remédio.
As pinceladas dos lugares preenchidos por gente em férias mostram um quadro enternecedor. Destaco as senhoras que passam encolhendo a barriga. Notável, o esforço dos abdominais em contracção, como se o exercício iludisse as adiposidades que escorregam, flácidas. O elogio vai para as senhoras que não têm preconceitos com o corpo. Aquelas que se entregaram à gula e passeiam, descomprometidas com a consciência, o corpo no estado em que se encontra.
Não é com surpresa que se observa o maior cuidado – ou, pelo menos, as tentativas para dissimular as vergonhas que o espelho patenteia – das senhoras com os corpos. Os homens são negligentes. Envergam as suas fartas panças sem preconceitos. Não os vemos encolher barrigas; pelo contrário, até parece que as esticam como sinal de orgulho másculo. É como mostrar a soberba da mesa farta, as proezas enquanto comensais daqueles que, quando amesendam e fitam a pratada que aterra à sua frente, vê-se a água escorrer pelos cantos da boca. Eu confesso: alguma obsessão com amontoados de gordura que inesteticamente se acumulam à volta da barriga. Obsessão pessoal, concedo. E, ao mesmo tempo, fútil observação.
As férias, nestes lugares onde abundam agregados familiares, são pródigas na vozearia dos petizes em alucinada algazarra. Invejo a energia debitada pela criançada. O mal será meu, que em férias me encontro em tal estado que pareço uma pilha quase sem carga em demanda do recarregamento para outro ano de trabalho quando as férias entrarem no ocaso. É ao contrário com as crianças: vêm para férias incendiadas por um fogo intenso que as alimenta para um alvoroço interminável. É como se andassem um ano inteiro a acumular forças: chegam às férias, longe de casa, e vomitam uma lava incandescente, imparável. É uma força bruta da natureza que se apodera delas.
De braço dado com as crianças que parecem endemoninhadas, outro postal necessário das férias são as reprimendas sonoras dos progenitores. Há-as em diversos registos. Paizinhos que dão primeiro uma estalada e explicam depois a razão – o estilo "torcionário" que daria azo a numerosas queixas-crime caso os vanguardistas da nova moralidade passassem a pente fino as praias e piscinas de aldeamentos turísticos. Paizinhos que abrem os pulmões e debitam todos os decibéis, pondo os olhos de uma praia inteira sobre si. E ameaças de castigos que são todo um programa de comportamento. Um dia destes, aos ouvidos chegou esta preciosidade: "se voltas a fazer isso [não me apercebi do desmando do petiz] ficas sem jantar".
O remédio? Abstrair do que se passa à volta. Que as vozes e gritos fossem apenas um ruído de fundo, muito difuso. Oxalá conseguisse apenas mergulhar na profundidade de um pensamento qualquer. Desligar da terra e alcançar em mim o sossego que é a demanda estival. Mas nem de férias os sentidos se desligam da tomada.
(Em Tavira)
1 comentário:
Há anos que não tenho férias, dessas assim. Para a maioria das pessoas, férias é, afinal, um tempo para gastar dinheiro, sem olhar a quanto e em que se gasta!Pois bem, já me deixei disso! Por duas razões: porque dinheiro não o tenho para assim o distribuir, mas também há quem o não tenha e ainda assim consegue-o gastar! E porque dei em apreciar, mais do que tudo, a liberdade de fazer só o que me apetece e não o que seria suposto fazer. As minhas férias, tal como agora as concebo, são um tempo para eu desligar de tudo! Nada de horas marcadas para nada, muito menos para sair da cama! Calma e sossego! Acordar demoradamente, depois de bem dormida e deixar-me ficar na cama a fitar o tecto, perdida em pensamentos, é das coisas que mais prazer me dão. Depois, sou um pouco como você. Não me apetece fazer a ponta de um corno e, como não me apetece, faço apenas o essencial, que é quase nada! É para isso que estou de férias, para me abandonar à luxúria da preguiça! Uma vez por outra vou até à praia, na hora do almoço, que é quando está mais solitária, fico uma hora a torrar ao sol embalada pelos sons do mar e aí os meus pensamentos se desanuviam, tudo me parece tão leve! Assim que me apercebo da afluência das pessoas que começam a chegar, acabou-se-me a paz! Levanto-me pois, dobro a toalha e retorno à base! Talvez gostasse de viajar, mas não com o espírito com que muitos viajam, que têm roteiros definidos com sítios para turista ver. Preferia ver o que se esconde, ensinar-me -ia bem mais.
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