5.8.09

Armas


(Um texto carregado de ingenuidade)


O dialéctico das armas. A voz que troa mais alto, a que impõe a razão pela força das balas – uma razão que se escapa a si mesma. Deste dialecto perdi o fio à meada: já não sei se é apenas a estupidez da espécie, ou se é a filmografia de Hollywood (pensando bem: a filmografia de todos os lugares) que promove a suicidária orgia de armas.


Eu, que nunca peguei numa arma – nem sequer armas faz-de-conta – custa-me a entender a adoração de uns e a necessidade de outros por um arsenal que chegava para exterminar a espécie. Às vezes (e a cadência tem aumentado), notícias de crimes hediondos. Um pega numa arma e dispara sobre outro, terminando ali com a sua vida. Às vezes é assim que expiram as desavenças. Um endemoninhado qualquer perde a lucidez. Com a cabeça fervente, e por não ter gostado do encaminhamento da troca de argumentos, toma uma decisão: tamanha afronta tem que ser resolvida com o argumento supremo, uma bala que termina de vez com a ostentação do oponente. Que interessa que o oponente deixe de pertencer aos vivos? E que interessa se a escala aparece invertida: o argumento, que lhe parece "supremo", é de uma indignidade atroz.


Arrependimento algum convence uma consciência amordaçada. O mal está feito e não tem retrocesso. A bala disparada não é como os boomerangs. Se, por acaso ou por destreza do homem do revólver, a bala perfura órgão vital não é só uma vida a lamentar: é a outra vida, a do homem que passeia a covarde coragem da força das balas, também desgraçada. Como pode tão alto gritar a insensatez da força das armas, quando o muito alto preço a pagar pode ser a privação da liberdade provada através do cárcere?


Ar armas são a negação da humanidade – levou-me, num acesso de lirismo, o pensamento à conclusão. Outra pausa para interrogar a conclusão. Que depressa se nega a si mesma: as armas são património genético da história da humanidade. A começar, foram invenção do homem. As sucessivas gerações souberam usar do engenho para aperfeiçoarem os revólveres, que se tornaram mais mortíferos. Não me interessa saber se um revólver vomita uma bala de pequeno calibre ou é tão brutal que despedaça um corpo. O resultado é sempre o mesmo: uma vida que perece no altar do insuportável belicismo servido pela poderosa voz de armas.


Tinha uma dúvida: não sabia se era a humanidade embebida na sua profunda estupidez ou a filmografia de todos os lugares o ingrediente da indústria das armas. O que é que isso interessa? O mal maior está feito a partir do momento em que uma arma é fabricada e fica exposta numa loja e encanta um imbecil que a decide comprar. Alguns, desconfiados com a insegurança que nidifica neste mundo, explicam a compra: é para auto-defesa. E quantas vezes o argumento se retorce e a auto-defesa se transforma em agressão gratuita? Eu digo: as armas existirem é a prova maior da irracionalidade da espécie.


A espiral belicista tem um especial nutriente na filmografia de todos os lugares. Há tiros a mais nos filmes, uma orgia de violência que é a flagrante demonstração do escasso valor que a vida tem. Nos filmes, as balas só são a fingir e os corpos por elas fragmentados só simulam a sua própria morte. O ardil deste mundo faz-de-conta é a armadilha letal. É que, ao contrário dos filmes, as armas da vida real têm balas que esquartejam corpos. O sangue vertido é sangue a sério. Ao contrário dos filmes, na vida real o troar de armas fermenta o choro pela perda de vidas. E, ao contrário dos filmes, não voltamos a ver a mesma cara que num filme anterior tinha jazido às mãos de uma bala sanguinária.


Para terminar, dois lirismos de um só vez: a quem odeia proibições, se acaso lhe fosse dada a oportunidade de lançar mão de uma proibição em jeito de excepção, ela que ditasse a proibição das armas. As fábricas de armamento todas destruídas. Talvez a maior miragem de todas estivesse, palpável, diante das nossas mãos: as guerras, enfim, apenas uma vergonhosa antropologia da espécie.


(Em Tavira)

1 comentário:

Milu disse...

Já agora que falou da indústria cinematográfica. Pergunto-me porque se gosta tanto dos chamados filmes de acção, ou seja, dos filmes onde haja pancada e tiros até mais não! E o que dizer das pessoas, que a eles assistem, com uma calma imperturbável, que até me impressiona? A violência que vejo em filmes revolta-me profundamente, tanto, que raramente consigo assistir, no entanto, a violência aqui é reproduzida com a intenção de divertir, e isto, faz-me pensar!