Uns castiços armados ao pingarelho (trajavam capas de um personagem do filme "Guerra das Estrelas") decidiram, pela calada da noite, hastear a bandeira monárquica nos paços do concelho de Lisboa. Derribando a bandeira (republicana) do município. Proclamaram a intenção: agora que entrámos nas comemorações do centenário da república, estes monárquicos dos sete costados avisaram que outras acções do que chamam "guerrilha ideológica" se seguirão – uma espécie de "contra comemorações" do centenário da república.
Logo a seguir, as reacções histéricas (e, porque não, histriónicas) das esquerdas tão penhoras da "verdade" puseram-me num esquizofrénico dilema. Por um lado, a querer dar o braço aos ofendidos republicanos, só para contrariar a patética exibição de uns monárquicos que se lembraram de exercitar essa coisa insólita a que chamaram "guerrilha ideológica". Imediatamente depois, ao ler as reacções das esquerdas penhoras do inamovível republicanismo, que tinham tanto de ofensa como da costumeira sobranceria, apeteceu-me aplaudir a infantilidade dos "guerrilheiros monárquicos".
Ao conceito de "guerrilha ideológica", para começar. Talvez seja sinal dos tempos. Talvez estes castiços sejam tributários daquele modernismo que exorta a liquidação das diferenças entre "esquerda" e "direita". Ou apenas uma terrível confusão de conceitos, pois julgava que "guerrilha" fosse genético das esquerdas – e, entre estas, apenas das que navegam pelas franjas do radicalismo. Julgo ter descoberto outra possibilidade (mais condescendente com os promotores da "iniciativa"): ainda imersos numa pós-adolescente rebeldia, e sendo firmemente de "direita", a acção foi um rebelde protesto contra o establishment dominado pelas influências esquerdistas. Não pude deixar de notar como um grupo que puxa pelos galões do conservadorismo monárquico e que se afirma de "direita" se socorreu de um conceito (guerrilha) tradicionalmente reclamado pela esquerda radical.
Quando os ecos da herética acção (assim vista pelos sacerdotes do republicanismo bafiento) começaram a ser discutidos, saltaram os aduladores do republicanismo protestando contra a heresia. Os socialistas que agora mandam no município de Lisboa sentenciaram o mau gosto da iniciativa e enviaram queixa para as autoridades competentes. Havia ali três crimes: "furto, entrada em local vedado ao público e ultraje de símbolo nacional". Continuei a ler a notícia e entrei em pânico. O crime de ultraje aos símbolos nacionais ("quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido") dá direito a prisão e tudo. Não se brinca com coisas sérias – é a triste ladainha que faz de nós, povo latino, um sorumbático povo que contraria a sua latinidade. Fiquei muito em pânico: recordei as várias vezes em que satirizei, neste local, os símbolos nacionais. Se algum querubim do republicanismo leu um desses textos, corro o risco de acordar numa penitenciária. Até tenho andado com insónias, só de pensar na eventualidade.
Entre as reacções das "esquerdas" senhoras de todas as verdades, o habitual Rui Tavares levou a palma. Começou por uma ladainha anti-betos que, vindo de quem vem, é de estranhar. Quando, em jeito de mote, se atira aos castiços monárquicos assegurando que "[s]e for uma acção de meninos-bem ninguém lhes teme as razões de queixa – que não têm – nem lhes pressente mais ameaça do que a de, na altura certa, os papás lhes arranjarem os melhores empregos", pergunto-me se isto não é o tão ferozmente criticado (por um dos seus gurus, Boaventura Sousa Santos) "fascismo social". Neste caso, "fascismo social" às avessas.
Depois da boçalidade (que nestes arautos do "bem pensar" nunca o é), Tavares articula um raciocínio escorreito para desmontar a diatribe dos, como lhe chama com humor, "guerrilheiros simbólicos". E se mal começou este artigo de opinião, mal tinha que terminar. Quis dar o flanco e abrir a discussão a temas que para a comunidade republicana são tabus (a cor da bandeira; estaria aberto a um referendo sobre a natureza do regime?). Termina com a habitual sobranceria ideológica destas franjas, ao abrir as portas a uma discussão descomprometida, "[c]om civismo e espírito democrático. À boa maneira republicana".
Nisto, lembrei-me das certezas muito assertivas do Prof. Vital. E, de repente, apeteceu-me abandonar a minha repugnância à monarquia para ser um monárquico dos sete costados. Só para mostrar a Tavares que o "civismo" e o "espírito democrático" não são exclusivos dos republicanos.
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