22.1.10

Circularidades


"No círculo da sua acção, todo o verbo cria o que afirma", Mário de Cesariny, A Intervenção Surrealista

Não era a planura assegurada pelos cânones do pensamento tranquilo. Havia um desafio, impenitente, a pender sobre os telhados mentais. Quando se atirava a corda ao ar, a gravidade impedia que se estendesse no horizonte. A corda subia bem alto, impelida pela força dos braços que desejavam por ela tocar no firmamento. Derrotada pelas leis da gravidade, a corda afocinhava no ponto de onde partira. Primeira manifestação de circularidade.

Era como as palavras que se tecem nos estreitos corredores onde se encavalitam. Diz o poeta, inebriado pela fase surrealista, que o verbo tem o predicado fantástico de criar a sua própria acção. Não há ideias que não se entronizem pela palavra. Não há acção que não venha à espuma dos dias através do fio da palavra. E os verbos são o autêntico manancial afirmativo. Com uma inigualável capacidade, dir-se-ia, de prestidigitação: só eles podem ora depor, ora atestar, as imagens que se oferecem diante dos olhos.

No fundo, é como se houvesse aqui uma nova metafísica. Tratamos os verbos como crenças. Ora afirmativos, ora o embelezamento das negações que compõem novas construções. Os verbos todos, os mais vulgares e os que só a muito erudita gente transporta no albornoz dos pessoais dicionários. Uma constelação infindável de verbos que se tecem numa circularidade impenetrável. Jogamos com os verbos como se tratássemos de congeminar evasivas manobras, os verbos todos alinhados numa caótica ordem, ordenados em inesperadas combinações que desarmam os que tentam adivinhar a sequência que vem a seguir. Uma caixa de Pandora. À medida que o novelo de verbos se desenreda, embrenhamo-nos numa circularidade ainda mais densa. As pontas descobertas só caucionam mais nós por desatar. Que os verbos virão desatar. E mais outros, à espera do necessário uso para os desafios que hão-de vir algum dia.

Os verbos cáusticos, os verbos adocicados; os verbos ensolarados, os verbos plúmbeos; os verbos distintos, os verbos vulgares; os verbos apresentáveis, os verbos de antanho; os verbos com letras simples, os verbos encimados por complexas construções imagéticas. Todos os verbos, todos sem excepção, a larga avenida por onde escorrem as ideias. São o sangue que corre na ossatura dos substantivos. Aqui e ali pontuados pela musculatura, ora mirrada, ora passada pelo trato do culturismo, dos adjectivos. Mas são os verbos que tudo avivam. Como o sangue que percorre as veias, nutrientes de tudo em redor. Acção e significante. O trote que marca a cadência.

Por fora das convenções: em vez de afirmação criativa, o verbo inverte-se na sequência estabelecida. O verbo, de uma vez por todas, cria aquilo que afirma. Como se fosse a entidade divina responsável por todas as criações que se oferecem aos sentidos. Há um lapso de tempo, um breve instante, a entrecortar a acção e a criação. Ao ser entoado, o verbo acabara, uns milésimos de segundos antes, de criar a sua própria afirmação. Sem ser a caução de claustrofóbicos vestígios. A circularidade que se espraia por todas as dimensões não reduz o horizonte a um espaço fechado, ao círculo onde todas as coisas se debatem – como se tudo terminasse no eco de onde partira. As ondas circulares são de uma amplitude notável. Expandem-se a cada desdobramento verbal, camadas que se desmultiplicam à medida que as palavras se compõem em estrofes perfumadas pelos frutos que pendem das árvores alindadas pela luz da primavera.

Como o sangue que traz vida ao corpo das ideias que se empunham na constelação de palavras, os verbos rimam com liberdade. São o nutriente que traz sentido à constelação de palavras. Desfazem as empalidecidas palavras compostas numa linha recta, as palavras carentes da acção tingida pela magia dos verbos.

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