21.1.10

Segunda pele, segunda juventude



Folgazão, o cinquentão sai do carro acompanhado por uma jovem e voluptuosa mulher – lábios carnudos sublinhados a vermelho carmim, enjaulada num vestido apertado que aviva as formas corporais, um decote libidinoso, a respiração inteira de luxúria. O homem olha em redor. Só para se certificar que os mirones tratam de radiografar as formas esculturais da longilínea mulher aloirada que se abraça a ele num demorado enamoramento.

O sorriso, dir-se-ia perene, transforma-se em sonora gargalhada que dá a mostrar a dentição perfeita, imaculadamente esbranquiçada. Enquanto a namorada com idade para ser sua filha sussurrou uma – talvez – obscenidade ao ouvido. O homem veste-se como se tivesse acabado de sair da adolescência. Mostra os tiques pueris de um enamoramento tardio. Mostra-se num assomo de juventude que não lhe cai em fatiota. Quem o visse ao perto notava as rugas ocultadas por cremes odorosos que adulteravam a cor da pele, suavemente tisnada. Deixa para trás o bólide desportivo, dois lugares e descapotável. Dirige um olhar de orgulho ao disparar o comando que fecha as portas do automóvel. O homem irradiava uma juventude tardia – ou uma juventude rejuvenescida na meia-idade.

Sentado à mesa do restaurante, petrifica o olhar na namorada enquanto ela desfila em passo de manequim a caminho da casa de banho, em provocante menear dos glúteos entalados no vestido escuro. Retém os olhares masculinos que percorrem a passada da mulher. Sem se incomodar ou enciumar. Enche o peito de orgulho à medida que homens sozinhos e mesmo homens da família ali acompanhados das consortes desviam o olhar para a monumental mulher enamorada de um indivíduo de meia-idade. A inveja dos mirones que se alambazam com o olhar quando a namorada regressa, ainda mais lasciva, da casa de banho: é alimento sublime, essa inveja.

Na mesa, o intenso e juvenil flirt fez com que ignorassem a presença do empregado de mesa. Que, por sinal, não fez questão de interromper o momento idílico por alguma razão. Quando o cinquentão de cabelos grisalhos negligentemente desgrenhados desviou o olhar e reparou no empregado de mesa, fez de conta que não estava ninguém nas imediações. Só para prolongar o prazer do desgraçado rapaz; só para enfatuar o orgulho másculo milagrosamente rejuvenescido de um cinquentenário em revivalismo juvenil.

A jovem mulher, imersa numa beleza estonteante, desfaz-se em derretimentos que acendam a luz vermelha dos invejosos em redor. O homem não cabe em si. Esbraceja, fala alto, ri-se com fartura em audíveis gargalhadas – como se já não chegasse o chamariz que era a acompanhante. Recebe uma chamada no telemóvel que atende em voz que ecoa por todo o restaurante. Repete, uma e outra vez, que não pode tratar do assunto, por mais urgente que seja, porque nenhuma urgência quadra com o avivar da juventude na companhia da "sua namorada" – e sobe o tom de voz de cada vez que entoa a expressão "minha namorada".

E, contudo, houve um instante, um só instante que se eternizou numa tela mental, em que o olhar do homem pintou uma tremenda angústia. Nesse instante, o homem retomou contacto com o planeta, com a insondável, milimétrica progressão do tempo. A ostentação de sinais era só isso: uma ostentação oca, um devaneio saudosista. Um túnel que se estreita a cada ano que o homem dobra. E uma interrogação atroz: sabia lá se muitas das coisas que lhe são dadas a fazer as faz pela derradeira vez.

Adiava sempre a última vez, reinventando uma juventude que as marcas do corpo desmentiam, com a ajuda da abastança amealhada. Não podia perder tempo. Nem ignorar oportunidades que lhe caíssem no colo e outras que fossem da sua lavra. Mascarou a idade física com um caleidoscópio de sinais que avivavam uma juventude que parecia inesgotável. Não fosse o jogo de sombras em que se escondia a pose vaidosa o pináculo da sua amargura.

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