A exposição prolongada a aeroportos tem efeitos adversos. Se for um aeroporto onde desagua uma amostra dos povos de todo o mundo, uma torrente de sensações contraditórias toma o seu rumo.
Pode ser da falta de paciência para os minuciosos controlos de segurança (desde que desembarquei em Frankfurt passei por mais dois controlos com funcionários mal encarados). Ou das muitas horas que estive no frenético, gigantesco aeroporto à espera do voo de ligação. Ao mesmo tempo que a impaciência e o enfado se amontoavam, uma pouco sóbria vontade de ser utente de aeroportos, muitos aeroportos, aleatórios aeroportos que se sucedessem à medida que desse na gana mudar de poiso. Era como se de dentro viesse um impulso para uma sabática de (quase) tudo. Com estas palavras de ordem: sem destino.
Talvez fosse por ter ido parar a um canto do aeroporto pejado de asiáticos. Nas imediações, as portas de embarque anunciavam voos para Japão, China, Coreia do Sul, Tailândia. A certa altura, sem precisar de fechar os olhos, ia jurar que estava num qualquer aeroporto numa agitada cidade asiática. Terá sido para combater o estado de espírito amofinado, ou por sentir arrebatamento com lugares cosmopolitas; dei comigo, ainda de olhos abertos, a imaginar uma demorada romagem em que partisse da minha cidade e a ela retornasse, indeterminado tempo depois, vindo do lado contrário. Uma volta ao mundo, sem prazo nem etapas nem destinos.
Não haveria planos. A não ser a primeira viagem de avião. Rússia – Moscovo ou S. Petersburgo. Para a frente, viagens intermináveis de comboio. Ancorando em cidades sem saber onde dormir. O mais difícil: comungar dos costumes locais, submergir na cultura, aprender a gastronomia, beber na história de cada local o desejo de uma fugaz cumplicidade. O mais difícil, contudo. Pelas barreiras da língua, pela timidez que não sei derrotar. No imaginário que preenchia aquelas horas de espera no aeroporto, tirei a limpo as certezas. A viagem (também) para liquidar a imperdoável timidez. Senão, como podia aproveitar a oportunidade de mergulhar no mundo inteiro?
Haveria de chegar à China. Descer à Índia. Perder-me numa longa temporada nas muitas Índias dentro da Índia. Nem que sobre a cabeça pendesse o temor da espiritualidade que se insinua (há tanta gente que renasceu depois de conhecer a Índia). Haveria de percorrer as profundezas do Tibete, alcançar o enigmático Nepal. E olhar, nem que fosse ao longe, para o majestoso Everest. Dar um salto ao Japão que esconde tanto bucolismo em sítios recônditos. Descer à Austrália, pegar num carro e palmilhar as estradas desertas, recusando sempre um mapa por companhia. Experimentar a Nova Zelândia, nem que fosse pelo menor de todos os atractivos – a fútil exibição de ter estado no lado contrário do mundo.
Por opção pessoal, contornava a África. Não por preconceito, nem temor pela miséria que rima com subdesenvolvimento, ou receio do choque térmico do tribalismo. Sem espúrios racismos. Atravessava o enorme oceano Pacífico até às Américas. Queria percorrer o Canadá, atravessar os Estados Unidos de uma costa à outra, com alguns laivos de civilização para enjoar outra vez. Com saudades do exotismo do hemisfério sul, tragava o equador outra vez. Quando desse conta, um avião teria aterrado no elegante Chile (por ser longilíneo e esguio). Haveria de o descer, outra vez de carro, desde o norte até aos contrafortes dos glaciares que espreitam o corno sul do continente, dizendo adeus, a muita distância, à Antárctida de todos os gelos. Depois a agulha afinava a norte, subindo a Argentina – ora em autocarros imundos e lentos, ora em comboios atravancados em carris novecentistas.
Buenos Aires seria a porta de embarque para casa. Não sei quanto tempo depois; se meses ou anos, barbudo e esquálido, desgrenhado e cansado. Houvesse coragem de alinhavar a aventura, sem compasso que esboçasse a esquadria do caminho, com alguma abastança necessária (pois não me propunha a eremita) e sem o importante porém de haver família, pessoas queridas a deixar para trás.
Não sei: se este impulso para partir em errância foi o sumo da fastidiosa espera no aeroporto (e daí um paradoxo), ou a vontade de experimentar muitos lugares desconhecidos num movimento espontâneo e circular. Como circular é a terra-mãe que nos alberga. E circular parece ser a existência, negando a pulmões cheios o trajecto linear apalavrado pelas teimosias.
(Em Sófia, Bulgária)
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