Ainda a indignação do "simples cidadão" Salgueiro contra a prodigalidade salarial dos sindicatos: de acordo com a extrema-esquerda, um dos males contemporâneos, nesta hedionda sociedade enamorada pelo capitalismo, é a entrega nos braços do consumismo. Ora, se se fizesse a vontade à extrema-esquerda, teríamos todos os anos generosos aumentos dos salários. Para sermos ainda mais dependentes do consumismo – pois que alguém acredita que com tanta massa na mão um quinhão fosse destinado à poupança?
E se, de repente, a extrema-esquerda alinhasse no jogo do consumo desenfreado e, portanto, sem dar conta, fosse aliada do abominável capitalismo? Só pode ser uma inadvertida coincidência. Alguém acredita que o ódio destilado ao capitalismo pelos senhores da extrema-esquerda seja apenas uma encenação? Que a coincidência não deixa de ser deliciosa, essa é que é essa.
Os meirinhos da extrema-esquerda, tão habituados à inevitabilidade das suas certezas, logo diriam que os aumentos dos salários serviam apenas para tirar muita gente do limiar da miséria. Esses dinheiros não seriam para alimentar necessidades supérfluas. Até entendo que reproduzissem este argumento. Do seu breviário faz parte a formatação da sociedade, a bem (pela educação como deve ser) ou a mal (sabemos como). Não havia lugar a devaneios individuais, logo reprimidos com o pretexto de que seriam desvios intoleráveis que podiam contaminar outros elementos da sociedade asséptica e manietada (que ainda congeminam nos seus sonhos). Se eles mandassem, ou se pudessem mandar só um bocado, o mundo passava a estar muito próximo da perfeição.
Desta perfeição: os donos das empresas, obrigados a partilharem uma fatia considerável dos lucros com os trabalhadores, alimentando aumentos de salários que se vissem com olhos de ver. Logo a seguir, os trabalhadores teriam o dever legal de não se alienarem com as tentações do consumismo. Teríamos, talvez, poupança forçada (no banco estatal, como é óbvio; ou em qualquer banco, desde quer todos tivessem sido nacionalizados). Ou uma polícia de costumes, que vasculhava o destino dos salários generosos que o governo em prol dos trabalhadores tivesse garantido. A serem identificados desvios de comportamento, com uma perigosa deriva para o consumismo imódico, os pecadores seriam tomados pela polícia de costumes e forçados a um maravilhoso programa de reeducação. Para pensarem e actuarem "como deve ser".
Lamentavelmente, as pessoas ainda não conseguiram perceber a bondade dos partidos da extrema-esquerda. Teimam, nas mesas de voto, em escolher partidos que alimentam uma forma de estar que depende do capitalismo. Desconfio que a imoderação salarial (pedra de toque da extrema-esquerda) está relacionada com a íntima convicção dos seus intérpretes de que nunca serão governo. Os adeptos da extrema-esquerda podem continuar a dar azo ao ódio aos lucros do "grande capital", conquistando a malta que detesta empresários que cometem a infâmia do lucro e exploram os trabalhadores pagando-lhes salários miseráveis.
Da incoerência as extremas-esquerdas não se livram. Sabem que o mundo é muito diferente do que idealizam. Se, por milagre, desenfreados aumentos dos salários deixassem de ser uma impossibilidade, comunistas e esquerda caviar prestavam um contributo inestimável ao aumento dos lucros das empresas onde os proventos mais gordos seriam espatifados. Quem imaginaria que a extrema-esquerda fosse tão amiga dos capitalistas?
Os donos das empresas é que têm vistas curtas. Fuinhas, teimam em cortar as unhas muito rente quando toca a distribuir remunerações por quem têm na folha de salários. Se os empresários percebessem a bondade de comunistas e de esquerdistas do caviar, do charuto cubano e das camisas Ralph Lauren, seriam os primeiros a abrir os cordões à bolsa. Se o não fazem é porque são avarentos e egoístas, querem-se alambazar com quase todo o bolo para si. Ou é porque são frugais na inteligência.
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