Era da adolescência – acreditamos agora, imersos na bruma das memórias que adoçam o distanciamento, o discernido julgamento do que fomos. Era daquela idade onde se consomem rebeldias inconsequentes. Ou era da música que entrava pelos ouvidos, da música que compunha as paisagens negras que povoavam insistentemente os dias, a música erguida a farol por onde nos guiávamos.
Naqueles dias, o filme diante dos nossos olhos era uma sucessão de imagens negras. Ora vertiginosas. Ora uns planos inertes, demorados, com a luz baça rendida à ausência de cores que prosperam no arco-íris. Dir-se-ia não haver anti-ciclones que conseguissem vingar, tamanha a teimosia das plúmbeas nuvens que pintavam o céu todos os dias. Desafiávamos as convenções que ensinavam, do alto mirante escolar, que as cores são as que se encantam nos miríficos arco-íris. Para nós, o preto era a essência de todas as cores. Ou a única cor que contava.
A rebeldia latejava em labaredas eléctricas que amalgamavam a fantástica lente do mundo. Estávamos nas tintas para os lugares-comuns que insistiam na ausência de cor quando depreciavam o negrume. Ao contrário: nos negros tons achávamos os mistérios por decifrar, os segredos que importava esquadrinhar, outros apenas conservá-los assim, segredos. As sucessivas camadas do desconhecido iam dando lugar a mais espessos mantos onde o negror se anovelava. Era no preto que a existência avivava. O preto não era o sarcófago das cores todas. Dele irradiavam os vestígios que haveriam de consubstanciar todas as cores.
Negávamos as aspirações arrebatadoras de mesquinhos que, assertivos, apoucavam o preto. Eram tão certeiros no diagnóstico que só apetecia pegar em remos e rumar para o lado contrário. Na sua implacável erudição, éramos sorumbáticos, aprisionados pela estultícia de uma cor doentia. Alguns cortavam a eito na sentença: o preto não era cor, era a negação das cores. Quem percorresse corredores de paredes negras, onde até as lâmpadas emanassem uma luz enegrecida, carecia tratamento ao entendimento adoentado. Como podíamos descobrir encantos na luz negra, nos olhares tingidos de preto, nas palavras que ecoavam a frieza do negrume em que vinham embrulhadas?
Havia um mistério indecifrável no preto, porventura o seu maior predicado. Sim, seria metafísico – no sentido de que as divindades não se explicam, ou contêm em si a sua própria explicação através dos dedos indeléveis da fé. Foi quando descobrimos, já a caminho do desmoronamento das febris ilusões juvenis, que o altar em que havíamos endeusado a cor preta era só um estado de espírito. Tão efémero como os estados de espírito. Havia um ponto a nosso favor: os estados de espírito, na sua intensa volatilidade, dispensam explicações. Tecem-se em seus leitos, ora aveludados, ora cheios de espinhos que cravejam a carne quando o corpo nele se deita. Tecem-se em seus leitos: soam à maresia veemente que se insinua quando o nevoeiro vindo do mar cavalga todas as trincheiras.
Hoje, quando já não sobra lugar algum para as ilusões de nada (nem sequer uma remota arrecadação perdida algures), o preto tem ainda o seu enlevo. Resguarda a antítese de si mesmo. Ora santuário de uma calmaria onde as ferventes mágoas se perfumam até se esvaírem os vestígios de dor. Ora o tórrido lugar onde as chamas excessivas conferem sentido ao ininteligível. Às vezes, apetecia migrar para árcticas latitudes. Só para apreciar a invernal, demorada noite, aqueles dias em que a luz do dia se curva perante a intensidade da noite que se prolonga dias a fio.
A noite, tão negra, encerra os segredos todos. Que a luz matinal, irritantemente translúcida, trata de descerrar. O que mantém a vivacidade do lugar em que estamos é sabermos que conserva largos pedaços inexplorados, entregues ao regaço dos segredos que serão o frontispício de tonificantes revelações. O preto, esplêndido, conserva a virgindade desses segredos.
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