Clara Pinto Correia fotografada enquanto "tinha sexo" (que estranha expressão!). O fotógrafo de serviço é o namorado da cientista figura pública. O produto conceptual deu origem a uma exposição de fotografia do namorado da fotografada. A ver numa galeria de arte perto de si.
A receita não é inovadora. Tropeçamos constantemente em arte contemporânea que se notabiliza pela provocação dos costumes, pela provocação de olhares sensíveis, pela provocação do que quer que seja. Não é que esteja contra o género artístico; limito-me a constatar que muitas vezes a criatividade se refugia na capacidade de chocar a audiência. Como se criatividade e provocação fossem produto de uma simbiose. A arte não escolhe a sua audiência, tão democrática é; a audiência é que tem autonomia para ir ao encontro da arte que deseja consumir. Somos livres para esconder a vista do que nos desagrada, concentrando o olhar na arte que nos enche de prazer. Neste exercício lúdico há um senão. Para esconder a arte desagradável num biombo, impõe-se espreitar em vestígios dessa mesma arte. De outro modo, como podemos colocar essa arte dentro de um armário escuro se dela não oferecemos uma amostra aos sentidos?
Nas páginas dos jornais andaram excertos do rosto de Clara Pinto Correia durante o acto sexual. Fragmentos das fotografias espalhadas pelas paredes da galeria de arte. Pela amostra, fiquei vacinado. Dispenso os esgares de prazer lúbrico da cientista. Posso parecer bota-de-elástico, mas ao ver os fragmentos de prazer orgástico em forma de retrato partilhados com a audiência interessada, o que me invadiu foi uma sensação de voyeurismo. Mas quem era o maior voyeur? Se aquela arte vinha em forma de convite a sermos voyeurs dos esgares de uma figura pública enquanto se entregava à lascívia com o namorado, a D. Clara e o namorado é que levam a palma do exibicionismo. Adivinho a indignação que tomou de assalto as mentes mais conservadoras, atrapalhadas por tamanha exibição de impudicícia.
Cada um faz da sua intimidade o que bem lhe apetece – note-se. Mesmo quando a intimidade o deixa de ser, quebrada a derradeira fronteira entre a esfera íntima e a praça pública. É nesta altura que o livre arbítrio convoca a decisão. A minha é a de dispensação do desprazer de ser testemunha dos grotescos orgasmos da D. Clara enquanto é penetrada pelo namorado. Para isso, prefiro um filme pornográfico. Outra vez: posso ser bota-de-elástico, mas isto soa-me a partilha do leito (onde os prazeres carnais desabrocham) com a comunidade inteira. E se nem os esgares de prazer de uma mulher deslumbrante seriam interessantes, o que dizer disto? Faz lembrar a provocação do escritor Saramago aos católicos: pura manobra de marketing artístico. Saiu a sorte grande ao namorado da D. Clara: agora já é um artista conhecido.
Nisto não consigo deixar de pensar: a elevada proficiência do namorado da D. Clara. O indivíduo é capaz de desempenhar judiciosamente a função, de tal forma que a D. Clara foi apanhada em inúmeros instantes de orgasmo (supõe-se que não eram fingidos…). Ao mesmo tempo, ainda tinha concentração para empunhar a câmara fotográfica e fazer arte enquanto o membro intumescido cobria a D. Clara de prazeres carnais. Diria que o rapaz é um grande artista. Quem se pode gabar de desembainhar a espada e fazer arte ao mesmo tempo? A isto chamo perícia em estéreo.
Se o género pega de estaca, amedronto-me só de imaginar que outros exibicionismos da intimidade possam ser traduzidos em arte. Pelo andar da carruagem, hei-de ver estampadas em páginas de jornais outras controversas figuras públicas a serem-no mais ainda pelas poses provocatórias capturadas em forma de arte. Uma figura pública a tomar banho, mostrando, orgulhosa, a fealdade do seu corpo. E outra a partilhar o quotidiano, cada minuto do quotidiano, com um público sedento de entrar na intimidade alheia. Até o tempo de recolhimento no WC, quando a fisiologia dita momentos escatológicos.
Já não digo que algo seja impossível. Se a D. Clara teve o desassombro de partilhar connosco as particularidades dos esgares faciais enquanto se desmultiplicava em prazeres lúbricos, algum dia seremos confrontados com os esgares (de esforço, em alguns; de prazer, noutros) que traduzem escatológicos momentos em que as excrescências interiores são evacuadas. A cada um fica a liberdade de imaginar as personalidades em correspondência com os esgares retratados.
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