1.1.10

Optimismo hi-tec



Um súbito fulgor tomava conta do habitual pessimismo. Assim que soavam as doze badaladas e ecoava o troar do encantatório fogo-de-artifício, a pele arrepiada recebia uns inexplicáveis pingos de optimismo. Tudo haveria de ser diferente – e para melhor. Como se estivesse anestesiado pelo foguetório, recusando entender que esse era um fogo-fátuo.

As circunstâncias do momento eram pujantes. Teciam o seu próprio ambiente, moldavam as emoções da turba educada para os necessários festejos. Podia não haver água nenhuma a brotar da fonte artificialmente emoldurada pelos vestígios de optimismo; mesmo assim, a folia dominante congeminava os passos trocados do pensamento, todo ele inebriado pela febril celebração que era, ao mesmo tempo, cerimónia fúnebre do ano que estava de abalada. Era como se magicamente a passagem de testemunho entre dois anos reverberasse uma confiança pelos dias vindouros que não ecoava na amargura herdada do tempo recente.

A esfuziante coreografia de cores encenada pelo fogo-de-artifício era um caleidoscópio de emoções que alimentava uma esperança aberta e intensa no ano nascituro. Tal como as pessoas em redor, o olhar demorou-se largos minutos no firmamento. Lá, onde o céu estava magicamente pintalgado de cores que substituam a sua natural escuridão. De repente, ainda se consumava a coreografia de cores ribombantes, assomou uma interrogação que ameaçava esfriar o optimismo contagiante: e se a encenação do fogo-de-artifício afinal fosse um sinal dos dias vindouros? Logo que as noites voltassem, repetitivas, a mostrarem as trevas habituais, o corpo haveria de vestir os paramentos da desesperança a que se acostumara.

Fez um esforço, quase sobre-humano, para se esquivar à interrogação. Quis escapar de outras interrogações temperamentais que teimassem em subir à superfície. Haveria de ser gente normal, apenas um entre tantos em divertimento na festa consagrada à diversão. As interrogações seriam obnubiladas, num adiamento de quem se acostumara a ser. Que interessavam as pessoais dores incendiadas pelas dores maiores de um mundo que sentia pungente? Que interessavam as pessoais angústias, mesmo as que latejavam com toda a força? Naquela noite, fazia de conta que essas dores tinham sido metidas dentro de um parêntesis. Suspensas. Tal como tudo que tivesse uma ressonância tristonha, que a circunstância do momento não autorizava as habituais elucubrações do espírito que apascentavam o caudal sempre até à mesma enfadonha foz.

Umas horas, umas escassas mas intensas horas, em que se sentira diferente. Para sua surpresa, não estranhava a nova pele. Olhava para as coisas e conseguia esboçar um sorriso. Era como se estivessem abraçadas a um espelho de onde irradiavam só cores encantadoras. Parecia uma adocicada revoada de vento que refrescava a existência, rejuvenescida. De repente, tudo parecia diferente na sua essência. Já sem a plúmbea face que obscurecia os espelhos, sobressaltando-os na sua ausente nitidez. Tudo desfilava diante dos olhos numa alvura impressionante.

As cores de tudo irradiavam, tão cristalinas, que cegavam a vista. Eram o nutriente de uma singular confiança nos tempos vindouros. Alguma lucidez, daquela lucidez que costuma semear os olhares desconfiados, entretanto irrompera. Outra impertinente interrogação começou a pender sobre o horizonte, mas tão ao longe que os dedos não a alcançavam: até onde iam os tempos vindouros pintados com as cores da perfeição? Contagiado pela exultação em redor, reprimiu as interrogações que queriam romper a bondade do momento. Preferia entregar-se no regaço da anestesia contagiante, desviando o olhar do medroso horizonte de onde pendiam as sombrias perguntas. Nem que fosse para experimentar o êxtase da ilusão de si mesmo.

Adiava as (de certeza) inevitáveis dores da ressaca para depois do sono que se seguia. A alvorada seria juíza. Até que a alvorada despontasse, queria apreciar a indolência que ensinara as cores e os sabores de um optimismo pouco experimentado. Depois decidia. Se regressava à vida normal. Ou se arremetia pela simulação de si mesmo, na peugada do fogo que emprestara cores artificiais ao enegrecido céu.

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