12.1.10

O bardo do regime e as maravilhas da “ética republicana”



Há dias, ouvia excertos de um discurso do possível candidato presidencial, o poeta Alegre. Como é habitual, um discurso inflamado com umas pinceladas de emotividade que cativam simpatias. (Como se sabe – até da iconografia religiosa – a razão sucumbe às emoções que semeiam pele de galinha.) Fiquei pasmado quando o bardo do regime articulou umas frases onde sobressaía a palavra "patriotismo". Acentuou a declinação: um patriotismo republicano, a necessária caução de credibilidade e prestígio. Nem de propósito, em ano de celebração do centenário da república, com tantos festejos que sintomaticamente trarão ao de cima a hagiografia de uma república que se acha ainda jovem. Esforço-me, mas não encontro diferenças entre a iconografia republicana, jacobina, o endeusamento acrítico dos seus seguidores e os que veneram divindades gurus de qualquer religião. A sorte da república é a sua alternativa, a monarquia, ser ainda mais vetusta. Só vence por falta de comparência. Uma vitória pouco convincente.

Ouvia, deliciado (mas não encantado) o poeta Alegre a casar patriotismo com republicanismo e a virtuosa, irrecusável esquerda. Foi quando me apercebi que as ideias, os valores, certas palavras só são viscosas quando são exortadas pelas pessoas menos qualificadas. Estamos habituados a que a extrema-direita tacanha chame a si o púlpito do nacionalismo. Renegamos a extrema-direita quando emprega as virtudes pátrias, pois tudo na extrema-direita exala desconfiança. Mas o bardo do regime, que se está a fazer a candidato presidencial de um quase insólito frentismo de esquerda, pode arregimentar as tropas à volta de um "patriotismo" (tão insólito como o frentismo de esquerda) que ninguém se incomoda.

Nesse dia, aprendi que o patriotismo só é nefasto se for aclamado pela intolerante extrema-direita; e se for a direita também não é recomendável, pois logo se cola a direita è extrema-direita, como convém para delimitação de terrenos nesta lógica movediça de desonestidade intelectual. Se forem os socialistas a enfeitar arrebatadores discursos com o patriotismo, uma ideia malévola transforma-se, por toque de Midas, num benévolo catecismo para recrutar as massas. Também aprendi isto: que os socialistas rivalizam em intolerância com a extrema-direita. Diagnóstico nada convencional, admito. Insultuosa comparação – dirão socialistas mais ofendidos. Insisto no diagnóstico: quando vedamos aos outros o uso de um valor e depois o convocamos a nós mesmos, não é só a incoerência que fica pelos calcanhares; é de intolerância que temos que falar.

A maior intolerância de todas é a que vem de braço dado com uma insuportável, sobranceira pesporrência: negamos nos outros o que só a nós permitimos. Por fim percebo que os tiques de autoritarismo de quem manda, agora na mó de baixo mercê das circunstâncias eleitorais, não são autoritários. Só se denuncia o autoritarismo dos outros. O mau autoritarismo. Ao bom autoritarismo tecem-se loas e inclina-se o corpo em sinal de respeito. Contudo, disto não podemos escapar: um autoritarismo é um autoritarismo. Ponto final.

Volto à sacrossanta república prestes a ser demoradamente vangloriada neste interminável ano de centenário da dita. Quando o bardo empastela o discurso com o valor do patriotismo, é por acção milagrosa da deificada "ética republicana" que a mutação hermenêutica ocorre sem que ninguém se possa ofender. (Ai de quem se ofender, que leva com a destilação intolerante da seita socialista). E retomo a república porque este cenário é sintomático da sua decadência: quem se perfila para suceder ao actual inquilino é, para além do próprio, outro jarreta. E dizem que a república está viva e recomenda-se, ainda tão jovem e actual? Como é possível se é uma república geriátrica? Uma sugestão, pois: os presumíveis candidatos à presidência deviam ter pelo menos cinquenta e cinco anos. Para garantir o necessário bafio à república.

Eu, que ando pelos antípodas de qualquer coisa que ressoe a esquerdas, acho muito bem que o bardo com esta semântica seja o seu candidato. Quando me falam em patriotismo ou nacionalismo não deixo de pespegar um adjectivo implacável: saloiice. Que as esquerdas (as extremas-esquerdas e alguns socialistas "modernaços") queiram engolir sapos, é lá com elas – já estão treinadas na modalidade. E como o jarreta que é de "direita" (insistem os adversários) não é de melhor têmpera, a abstenção recomenda-se, tão profiláctica.

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