5.1.10

Por isso é que gosto dos gatos




"O sonho da maioria dos portugueses é, há décadas, há séculos, acolher-se no regaço protector do Estado. De preferência como seu servidor, se necessário como seu subsidiado." José Manuel Fernandes, Público de 03.01.10.

Não sei como é noutros países com os quais nos possamos comparar. Serão tão dependentes das alcavalas do Estado, tão servis perante ele? Será que também quase endeusam o Estado, pouco faltando para que as alusões que a ele se façam exijam a substituição da letra inicial da palavra "ele" por maiúscula? Por cá, é um cortejo infindável de sinecuras, tachos, prebendas avulsas, avenças para amigos e familiares (mais os familiares dos amigos e os amigos dos familiares). Negócios em que é preciso prestar vassalagem a quem tem o poder público nas mãos, não vá o negócio ficar-se pelas águas de bacalhau. Uma imensa roda dentada tentacular. Um bicho tremendo que se alimenta de si mesmo e dos que lhe dão alimento – quando estes mal reparam que não se alimentam do bicho; ao invés, são seu alimento. Uma bola de neve que cresce à medida que desce a ladeira.

Não tenho ilusões: este padecimento vem de trás, de muito longe. Está tão enraizado que estas palavras insubmissas não fazem sentido para muita gente. Haverá estado mais natural do que a generosa protecção do Estado em que carradas de gente se encavalita? Não foi esse o préstimo do Estado, deste moderno (e, porém, vetusto) Estado do bem-estar social que levas de gente garantem ser um traço irrecusável da civilização? É como se todos (ou quase) fôssemos trapezistas embalsamados, a inércia motivada pela tranquila rede de protecção assegurada pelo omnipresente Estado. Com encordoamento tão fino que ninguém a perfura caso caia das alturas. Se, como dizem os manuais, o Estado somos todos nós (uma falácia pegada), todos nos protegemos a todos. Encantadora solidariedade! Não tenho ilusões: padecimento incurável.

Há um porém semeado no caminho, uma pedra no sapato que só a cegueira dos apóstolos do Estado impede de notar: o endeusamento é um ardil. Comprometido, esse endeusamento, pelo utilitarismo de quem se refugia na aba do Estado. Uma terrível lógica cumulativa: muitos a servirem-se das suas alcavalas ou da sua protecção atraem outros mais à candidatura a semelhante estatuto. Numa lógica imparável que faz medrar um monstro. O pior é quando os que arremetem corajosamente sem o colo protector do Estado, os dinamizadores que consumam a iniciativa privada, resvalam para a bebedeira colectiva em que muitos se enfrascam. Já quase ninguém sobra fora desta tutela asfixiante.

Até admito que a estabilidade é um bem que poucos enjeitam. E que nos ensinam, sem direito a contraditório, que não há quem a assegure tanto e tão bem como o salvífico Estado. Pode ser que sejamos congenitamente alérgicos ao risco. Ou pode ser que, ao contrário do que recolhemos dos manuais encomiásticos da história, esta gesta de portugalidade seja covarde. Ao ponto de se acobertar nos lençóis lânguidos do Estado, onde as águas são sempre remansosas e a responsabilidade nunca é individual. A factura deste gigantismo imparável? Irrelevante. Alguém, muito mais tarde, há-de pagar a conta. Porventura quando os que hoje estamos acordados já tivermos fenecido.

Esta dependência intrínseca, que cava uma cova funda onde estão os nutrientes da subserviência, faz-me às vezes quase sucumbir na resignação. É quando recolho a lição de vida dos gatos. A sua poderosa independência: só fazem o que querem, declinando o amestramento humano. São oportunistas, como todos somos. Procuram-nos para o alimento. Procuram-nos para os afagos. Mas são eles que comandam, eles que tomam a iniciativa e recusam a nossa vontade quando a deles não coincide.

Os gatos são diferentes dos cães, mais obedientes, serviçais quando estupidamente criados como criaturas circenses em vez de serem animais de companhia. Os cães são campeões pavlovianos. Que é o que somos – pavlovianos – quando interessadamente nos entregamos no colo tentador do Estado.


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