Não. Ainda não sou membro do PETA (People for the Ethical Treatment of Animals). Já estive mais longe de o ser, de cada vez que dou de caras com estúpidos maus-tratos a animais (de companhia e não só). Só o não sou por causa do irremediável individualismo que me afasta convincentemente de qualquer associativismo.
(E convém abrir um parêntesis para aflorar algumas excentricidades do PETA que têm um sabor ambíguo. Por um lado, uma campanha publicitária que chocou as mentes católicas: uma modelo desfilava com asas de anjo contra a utilização de peles de animal nas roupas das madames. Os dogmas não se reinventam. Asas felpudas, só mesmo os anjos consagrados na iconografia católica. Vá-se lá admitir que uma lasciva, desnudada rapariga desfile na tela empunhando umas angelicais asas.
Por outro lado, outra conhecida rapariga apetecível avisava que o sexo em excesso faz mal, ao mesmo tempo que atirava um olhar paradoxalmente lúbrico. Sossegamos logo a seguir; a menina dirigia a advertência aos animais de companhia – por assim dizer, aos donos dos animais. Para evitar que as ninhadas proliferem exponencialmente, aumentando as probabilidades de animais que caem abandonados nas ruas, ou de animais que mal passam da infância, ou de animais que acabam atropelados à primeira aventura nas ruas. Só que esta campanha de emasculação e esterilização animal contraria a bioética que combate as emboscadas antropocêntricas. Com que autoridade impomos o totalitarismo humano sobre a natureza animal, castrando os animais de companhia e retirando-lhes um prazer que não gostamos que nos seja negado? Isto põe-me a pensar: os gatos e a cadela cá de casa são todos castrados.)
Tudo isto a propósito de uma expressão idiomática – outra – que faz interrogar o seu sentido. É aquele hábito de dizermos que alguém tem uma vida "abaixo de cão", ou que o raciocínio de um oponente é tão absurdo que escorrega a um nível "abaixo de cão". À primeira vista, os militantes do PETA deviam-se insurgir contra a expressão – que, é importante que se diga, não é idiossincrática da língua materna: na língua inglesa, por exemplo, usa-se "underdog". Assim como assim, o estalão escolhido para dar alvitres sobre a miséria alheia, ou a indigência mental de quem se situar no outro lado da barricada, é o cão. Quando se sugere que um pensamento está "abaixo de cão", estamos a situar o canídeo no limiar. Sem que o canídeo seja culpado do que quer que seja para ser convocado à comparação. Os militantes do PETA protestariam que a comparação é ofensiva para o cão. Uma degenerescência social que continua a poluir argumentos com uma metáfora aviltante para o cão.
Reflectindo na expressão idiomática, ela pode não apoucar o cão como se pensa. Quando dizemos que alguém tem uma vida infausta, de tal modo que está "abaixo de cão", essa pessoa vale menos do que um cão. E estão errados os fanáticos da causa animal quando se ofendem com a comparação, argumentando que ela já coloca o cão num patamar rasteiro. Enganam-se: o desgraçado a que aludimos está ainda mais abaixo e tem o "privilégio" de ser humano.
Confirma-se o que os olhos consomem. Há cães maltratados, indignamente maltratados, uma vergonhosa manifestação de bestialidade humana. Como há gente que está abaixo de cão. Vivem pior do que cães com dono. (Excluo aqueles cães que dormem ao relento, numa casota sem condições, com a liberdade acorrentada.) Há gente a passar fome e cães que se alambazam com manjares opíparos. Há gente a dormir ao relento, as carnes enregeladas pelo frio invernal, e cães que dormem no calor de uma casa aquecida, cães que vêm à rua ridiculamente encasacados.
Como muitas, esta expressão idiomática é falsária. Primeiro, remete os cães (sem distinguir entre cães com vida principesca e cães vira lata) a um patamar pouco digno de padrões civilizacionais que já retiraram o humano da bestialidade. E, segundo, usar a expressão "abaixo de cão" é motivo de ofensa para os fanáticos do humanismo. Eles apressar-se-ão a lembrar que há pessoas que vivem pior do que cães, o que, a seu ver, é intolerável. Dizer que estão "abaixo de cão" reforça o intolerável.
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