25.1.10

Corpos entrelaçados

Uma coreografia intensa. Uma alquimia dos sentidos. Os corpos depõem-se na sua nudez, reduzem-se à simplicidade dos gestos espontâneos conduzidos pelo desejo. Arfando, suando, mostrando a temível beleza que apoquenta os sábios de todas as moralidades. Nesses instantes em que os corpos descem do pedestal da superioridade da espécie, tão parecidos com os animais que arqueiam a sua irracionalidade.


As mãos que se tocam, os olhares furtivos, os lábios marejados que derramam arrepios. Debatem-se, os corpos. Trocam-se, os corpos, nos irreflectidos gestos que emprestam animalidade. Dos gestos perfumados pela beleza da espontaneidade. Os fogos que se incendeiam, nem que a paisagem seja toda composta pelo branco árctico. A cumplicidade dos corpos entrelaçados, num hino sublime aos sentidos expostos em toda a sua nudez.


Os dedos tacteiam as curvas, repousam nas saliências mais apetecíveis. É lá que bebem o seu nutriente maior. E, enquanto a fogueira crepita, os corpos acompanham o ruído da lenha que se consome. Não se reduzem a cinzas, os corpos, na combustão a que se entregam. Sobrepõem-se ao ruído da fogueira. Escalam a ladeira onde os prazeres se renovam, abafam-se eles mesmos numa fogueira ainda mais intensa. Os corpos ferventes, trémulos, no compasso da coreografia perfeita.


No alto momento em que a cumplicidade dos corpos se desvela em uníssono, é como se o tempo ficasse parado por algum tempo. A noite que se confunde com a manhã, ou a maresia que invade a montanha tão longínqua do mar. Os corpos encontrados no néctar mais precioso. Os corpos que perderam a pluralidade, entronizados como o singular. Entrelaçados, entoando uma melodia que só aos corpos é audível. E irrepetível, nem quando uma vaga sensação de ritual percorre as paredes do quarto.


Há gotas de suor que se soltam entre a fusão dos corpos. Há uma furiosa, suave peregrinação que cavalga na singularidade dos corpos. Dos corpos que outrora se intimidaram quando ainda eram desconhecidos. Desses mesmos corpos que são um mapa imenso, um mapa onde ainda sobram enigmas, mas o altar que já não guarda segredos. É quando os corpos se despojam de tudo o resto: ficam ali, um diante um do outro, só os dois corpos entregues aos seus próprios imperativos. Consomem-se enquanto se alimentam.


Os corpos falam a sua linguagem. Uma semântica de devassidão. As palavras ecoam através dos gestos, das mãos que se apertam, fortes; das mãos que ungem o deleite, aveludadas. Do amplexo dos corpos num diálogo sem palavras – só gestos, só tremores alicerçados – esvoaçam os pássaros numa coreografia que empresta alegria aos céus intensamente azuis. Falam-se, os corpos, um através do outro. Como se houvesse neles uma alquimia de sons e sentidos e afagos – e todas as mágoas se consumissem na purificação dos corpos. Como se um corpo se sentisse através do outro. E dele regressasse ao mais alto da sua essência. 


Um corpo olha o outro como o seu campo de flores. Como são as flores: um santuário de perfumes. Diante de um campo de flores, resta ao corpo dedilhar as estrofes de um poema. Enlaçados, os corpos depõem-se num poema que se aviva no sussurro da carne com a carne. Como se não houvesse o dia seguinte. Como se não houvesse o dia seguinte.

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