16.2.10

A vaca sagrada da língua

Argumentos assombrosos: devemos ser pastores da língua nativa enquanto ensinamos nas universidades. Ou a língua corre o risco de se tornar um arcaísmo, uma língua que seria quase tão morta como o latim. Com esta causa no fio do horizonte, tomam-se dos remos que movem contra uma – dizem – tormentosa maré que pinta a modernidade com cores aflitivas: o inglês que está por toda a parte e se insinua como doença irremediável. O inglês que ameaça colonizar as nossas salas de aula. De braço dado com os alunos estrangeiros que aproveitam programas de intercâmbio. Talvez terminar esses intercâmbios seja a solução.

Há quem faça aulas bilingues. Metade da aula na língua nativa e a outra metade em inglês. Julgo que o façam por elementar justiça. Ninguém fica prejudicado: nem os alunos indígenas, que não se sentem à vontade com outra língua senão a sua; nem os alunos estrangeiros que, já que foram admitidos a estudar, devem tirar proveito do que lhes é ensinado. E por aqui chegamos ao cerne: a comunicação. Como nos conseguimos entender, sem ser por linguagem gestual, ou por infantis desenhos esboçados num papel, ou através dos préstimos de um tradutor? Só me ocorre uma resposta: uma língua que seja o máximo aglutinador comum. Nos tempos em que estamos, o inglês.

Os pastores da língua materna podem não aprovar o diagnóstico. Mas o diagnóstico passa, e de longe, por cima do seu voluntarismo. As coisas nem sempre são o que gostaríamos que elas fossem. O que parece irremediável (jogando os dados que conhecemos) é o inglês enquanto o tal máximo aglutinador comum; sim, podemos soletrar a expressão sem temer o esgar de reprovação dos outros: uma língua franca.

Quando alguns acenam com o cenário dantesco do desuso da língua, parece mais um pretexto do que um argumento. A língua nativa continua (e continuará) a ser ensinada desde os bancos da escola, quando as criancinhas são apresentadas aos rudimentos da língua na sua forma falada e escrita. Diga-se de passagem, aprendem-na cada vez pior. Com modismos pedagógicos vanguardistas que instruem os professores para a condescendência com os erros ortográficos. Quem paga as favas são os que apanham estes adolescentes ainda com as fraldas universitárias. Escrevem uma língua de trapos, com profusão de frases ininteligíveis e erros ortográficos. Será que os meus colegas que estão perplexos com a desvalorização da língua materna se querem substituir aos professores das escolas e passar a ensinar nas universidades a língua tão maltratada?

Este argumento é – repito – mal amanhado. No ensino universitário, a língua é um instrumento. Não é objecto de cultivo (descontando os cursos onde se estuda a literatura da língua materna). É um instrumento ao serviço do ingrediente mais importante da dialéctica entre professor e aluno: a comunicação. Se não conseguirmos comunicar o que ensinamos, o conhecimento esbarra na barreira comunicacional. Contribuímos para a frustração (e para o fracasso) dos alunos. E ditamos a nossa própria incompetência, ao mesmo tempo que, em tribo, nos encantamos com os contrafortes das torres de marfim onde nos enclausuramos. Desta vez, um diagnóstico pouco confortável para quem ensina.

Se nos resta o consolo do que fazem outros países que consideramos mais avançados, é que em alguns deles todo – enfatizo: todo – o ensino nas universidades é feito em inglês. Quer haja alunos estrangeiros misturados com alunos nativos, quer só estejam estes na sala de aula. E, que se saiba, esses países não se barricam nas catacumbas do atraso por deixarem de usar a língua materna quando ensinam saberes universitários. Nem sequer a sua língua escorrega para o estatuto de língua morta. Não quero acreditar que os pastores da língua nativa (por intermédio do que ensinamos) aceitam a ostentação da medalha do orgulhoso isolamento internacional. Esses foram outros tempos; esses sim, de um atraso vergonhoso.

Eles laboram numa tremenda confusão: a língua de que se dizem zelosos guardiães não é salva só por continuar a ser usada nos bancos das universidades. O lugar próprio para a defesa da língua é a literatura. (E, mesmo aí, quem não se recorda de Fernando Pessoa e de Jorge de Sena a escreverem poemas em inglês? Esses poemas perderam os pergaminhos da literatura portuguesa?)

(Em Wessem, Holanda)

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