19.2.10

A paródia da morte


Em Amesterdão, imóvel para o retrato. Nas costas, um pantomimeiro a fazer a figura da morte, de negro vestido, uma careta em forma de caveira. Ondeava de um lado para o outro a ceifa fatal, com o perfume da catástrofe. Em movimentos delicodoces, tudo à volta subitamente imerso num silêncio arrepiante – nem a manada de carros ou a multidão concêntrica ecoavam ruído algum. O homem parecia absorto na tétrica coreografia. Estacado no meio da praça central, ninguém se aproximava dele. O bulício da cidade que ali confluía desviava-se do vulto medonho, como se os transeuntes espontaneamente traçassem a esquadria às imediações da morte. Alguns esboçavam arrepios enquanto desviavam envergonhadamente o olhar para o negro vulto. Outros, possuídos por uma superstição belicosa, afastavam os olhos para os antípodas do inglório pedinte.

E eu, medroso da morte por causa do ateísmo que ferve nas veias, posava para o retrato com a soturna figura na retaguarda. Gritou mais alto a obstinação em romper a espessa malha das superstições. Apavora-me a morte? Tanto que é o motivo maior para uma demorada e intensa existência – pelo menos são os planos que se enquistam nas intenções. A irracionalidade das superstições magoa mais do que o tormentoso fim de linha que culmina a existência. Nem sequer hesitei em manter a pose para o retrato. Podia mexer-me uns metros para qualquer um dos lados, tirando do horizonte a irascível figura que eternizava a fotografia naquela praça central de Amesterdão. Os pés não quiseram mover-se um centímetro que fosse.

Andei a pensar nisto. A agonia para derrotar as pálidas superstições libertou-me de um freio: verguei as irradiações interiores que tornam a morte uma palavra, uma ideia proibidas. Fui, durante algum tempo, o transeunte mais próximo do lúgubre vulto. Simbolicamente, o desafio à morte. Era como se ela rondasse, ameaçadora como sempre, e nem um arrepio tergiversasse o espírito. Deixara de me intimidar pelo que sempre causara o maior medo de todos. Quis-me convencer de que tinha sido capaz de um feito. Como se tivesse por fim rompido uma barreira que sempre o fora mental.

Mas depois percebi que as coisas simbólicas são isso mesmo, o vácuo dos símbolos. Podia escrevinhar odes em desafio à lancinante morte; mas ela era encorpada por uma decadente figura vestida de negro, empunhando a ceifa que repetia os vagarosos gestos de quem tem uma sede indomável de extrair almas ao contingente dos vivos. As odes não passavam de exibições frívolas, tão ocas como os simbolismos que ostentam um garbo diluído em vapor inodoro. Ao mesmo tempo que sentia uma gratificação imensa pela omissão do medo do vulto da morte, não demorava a interrogar se tudo isto – o pedinte em teatral exibição e a pessoal vaidade interior por ter desafiado a morte – não era uma paródia inteira, uma simples encenação sem qualquer sentido.

Passeei pelo fogacho da coragem imberbe. Como aqueles que parecem tomados por um inexplicável ensandecimento e se atiram de cabeça para diatribes impensáveis, mesmo para o coração de uma fogueira que arde bem alta. São os que costumam ter um final triste, o derradeiro final, iludidos que a fátua coragem será exaltada por poetas em forma de ode. Ao fim de tudo, dei conta que nem os ecos da teatralidade fossem superados e o peito farto que fiz à morte representassem uma mudança de cenário pessoal, era só um nada aconchegante desenlace. A morte ainda tem remédio. A coragem dos venturosos que desfilam essa vã vaidade antes do tempo é uma miragem que os mais lúcidos testemunham, atónitos pela irresponsabilidade dos que se aprestam a desgastar, tão gratuitamente, a única vida com que foram agraciados. 

Quando voltei a passar naquela centrípeta praça, o vulto já tinha desaparecido.

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