Há inúmeras explicações para as ruínas que, muitos anos depois, quando são descobertas por arqueólogos, merecem pousio num museu. Podem ter sido guerras devastadoras que não deixaram pedras intactas. Ou o desleixo de quem converteu lugares em ruínas. Ou a erosão do tempo a acompanhar o desinteresse de quem habitava nos lugares arruinados. Ou a confirmação de que as eras que se sucedem experimentam a espécie humana, conferem-lhe densidade.
Num museu em Sofia, passei os olhos por fragmentos de pedras ornamentadas, moedas finas e desgastadas pelo muito tempo que estiveram em hibernação debaixo de terra, papiros fundacionais de qualquer coisa, anéis cravejados com corpulentas pedras preciosas que coroavam os suseranos. Gostava de ter percebido o contexto: o quando e o porquê do valor incalculável das peças catalogadas e protegidas por vitrinas à prova de bala e do simples tocar dos dedos de gente mais curiosa. Como não aprendi o alfabeto cirílico na escola, só pude olhar para aqueles fragmentos da história, de uma história qualquer digna de registo, sem ter acesso às explicações que ladeavam a exposição.
(Havia uma barreira detrás de outra barreira. Por desconhecimento do alfabeto, nem sequer se colocava o obstáculo da língua na forma escrita. Haveria de tropeçar no obstáculo quando procurei um restaurante para jantar. Escolha por exclusão de partes: os que só tinham ementas em alfabeto cirílico fizeram a exclusão de si mesmos. Tirando aqueles lugares tomados pela onda de ocidentalização, com empresas multinacionais a frequentarem o mercado local, o cirílico era a maré dominante. Talvez Sofia não seja uma cidade que receba tantos turistas que justifique o desdobramento de informação nos dois alfabetos. Em algumas ruas – as principais – nota-se esse esforço, o que é útil para quem lê um mapa enquanto descobre a cidade. No metro, por exemplo, só havia informação em cirílico.)
Ao lado dos vestígios expostos, fotografias elucidavam os visitantes. A linguagem universal das imagens, sobretudo quando elas falam por todas as palavras, ultrapassava a barreira do alfabeto cirílico. Percebia-se que havia devastação nos locais que não deixaram senão uns vestígios para os tempos vindouros. De um lado, fotografias de igrejas, mercados, aglomerados de casario – fotografias das pedras que sobravam no despojamento da destruição. Ao lado, um desenho que deixava perceber como eram aqueles lugares antes de terem sido assolados pela destruição.
Fiquei com a impressão que a devastação foi causada por guerras. Estamos habituados a medir a cretinice das guerras pelas vidas que consomem. A devastação do património é menos notada. Sobram imagens pungentes de edifícios derrubados, da putrefacção dos lugares atingidos pela sórdida luva belicista. Como se o mapa se redesenhasse e os lugares mudassem de lugar. E tudo o que emoldurava o que existira tivesse caído no alçapão do esquecimento. A arqueologia resgata o passado obnubilado pela estupidez ou pela mera ignorância humana. Os arqueólogos trazem os caóticos fragmentos do passado até ao conhecimento de quem vive no presente. Perpetuam a história que a demência dos antepassados entregou nos braços da destruição. Ao revelarem os vestígios remotos de um passado comum, os arqueólogos são, ao mesmo tempo, de uma generosidade singular e juízes impiedosos. Entregam a generosidade a favor dos seus contemporâneos: quem nos traz conhecimento merece gratidão. E sentam no banco dos réus os antepassados que não souberam, ou não quiseram, perpetuar as suas marcas para o futuro.
Se houvesse a sensibilidade de agora para preservar os vestígios dos antepassados, porventura não havia arqueologia. Chama-se evolução da espécie. No futuro longínquo, haverá arqueólogos que resgatem o que somos e fomos agora? Contra o habitual pessimismo antropológico, fica esta interrogação.
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