Já sei: os estereótipos são areias movediças, terreno onde amiúde se traçam bissectrizes de injustas generalizações. Nem todos se tomam pelo padrão aferido pelos estereótipos, bem sei. E, contudo, acontece conhecer vários arquitectos que são os fautores da idiossincrasia que se segue (dos que conheço, só uma minoria foge do estereótipo).
São os arquitectos assoberbados pela estética e com a mania que estão e são a vanguarda. Parece que não se interessam muito pela substância das coisas, tão atarefados em compor uma imagem (sua, ou dos edifícios que saem dos estiradores) que não passa do papel de embrulho em que se vestem. Propõem-se transformar os padrões: o que para os néscios (os não arquitectos) se limita a uma ausente substância (a estética), para eles converte-se em conteúdo. Eu diria: transforma-se em credo, uma linguagem codificada que só eles falam, uma língua de trapos em forma do traço vertido do estirador em momentos de arrebatadora inspiração. Naqueles instantes em que, acometidos por uma espécie de inspiração divina, dão um salto no futuro, fazendo o futuro através do seu traço presente.
O arquitecto passeia-se, supostamente discreto; mas falsamente discreto, naquele mistério que resguarda uma putativa timidez que é apenas um invólucro onde esconde a superior diferença. Está sempre na crista da moda. Da moda que segue os ditames das vanguardas que também ensaiam os seus modismos. Um dia destes, já o frio invernal apertava, apareceu com um (como lhe chamar?) cachecol alternativo, que a mim me parecia uma écharpe feminina, negligentemente apertado à volta do pescoço. Comentei com alguém, do sexo feminino e porventura, ao contrário do que fui acusado de ser, não bota-de-elástico.
- "As modas mudam", advertiu ela. "As fronteiras entre o vestuário masculino e feminino esbateram-se."
- "Assim como assim, até já se inventou a moda 'unissexo'", anuí com algum cinismo de permeio.
O arquitecto desfila na sua pose discreta que é, todavia, notória. As roupas sempre escuras, como convém quando nos achamos dentro da tribo das vanguardas estéticas. Melenas grisalhas falsamente despenteadas, como se os cabelos desalinhados o fossem mercê de uma aleatória arquitectura capilar. Mas o arquitecto que passeia a sua sibilina superioridade estética também fala, de vez em quando, só para conhecidos – que aos demais reserva a indiferença dos mal-educados. Pasmamos, os que olham para a altivez estética do arquitecto, aquela sobranceria que se arrasta detrás da circunspecta aparência, quando algumas palavras se atamancam à saída da boca. É que o arquitecto encavalitado na proa da vanguarda estética tem (os que forem sensíveis ao "fascismo social" não leiam à direita do parêntesis) cerrado sotaque beirão. Não conhece "esses" e "cês", só "xis"; nem pronuncia o "zê", pois só conhece o "jota".
Talvez não saibamos que os pastores da estética vanguardista são exilados das beiras que aterram na grande urbe e jamais se desprendem do sotaque denunciador. Descobri isto: a vanguarda da estética, ó reino admirável e tão cheio de conteúdo, democratizou-se. Já não é uma oligarquia citadina que redesenha os sinais dos modismos à medida que sentencia os alvores de uma nova época. A igualdade de oportunidades soergue-se. Até nesse universo tão insondável, tão exclusivo, tão fechado à entrada de intrusos, dos que fazem arquitectura e se consideram três passos à frente do comum dos mortais quando se ajuíza a perícia estética. (Como se isso tivesse alguma importância.)
Foi quando o fantasma que me cerca todos os dias subiu de novo à ribalta. O "querido líder" da pátria (o fulano que um dia destes surgiu, ufano, rodeado de mulheres na comemoração do centésimo dia do segundo governo que chefia – um feito!) pode não ter sotaque que seja delator da origem regional. Veste fatos Armani. Mas não deixa de ser um labrego escondido em aprumadas e dispendiosas farpelas. Nenhum papel de embrulho, por mais vistoso que seja, por mais que bosqueje uma meticulosa operação de cosmética, transforma um labrego noutra coisa qualquer. Nem que seja um arquitecto (chancela mínima para atestar a vanguarda da estética) que arrasta consigo os tiques todos do código genético das vanguardas que interessam.
Talvez seja por isso que o arquitecto "softly fashionable" fala tão pouco.
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