23.2.10

Discretas ilegalidades


As que passam incólumes, debaixo dos narizes dos zelosos estafetas da legalidade que, para o caso, andam distraídos. Por exemplo: a publicidade a automóveis que garbosamente anuncia os dotes mecânicos e a velocidade estonteante que podem atingir. Um convite à ilegalidade que – dir-se-ia se fôssemos todos legalistas ou polícias de costumes – devia ser punida antes do tempo. Assim como assim, já são tantas as entorses aos alicerces do Estado de direito que ninguém notava a aberração.

Estou à espera de ficar uns tempos sem poder conduzir depois de ter sido fotografado a cento e dez quilómetros por hora, quando não devia ter ultrapassado os oitenta. Exigiria vingança contra os que perdem amor a uma pipa de massa e compram automóveis de avantajada cavalagem, protestando por serem eles os potenciais infractores ao código da estrada. Quem se deixa enamorar por um bólide potente para andar a passo de tartaruga, em obediente postura das leis? Os barrigudos agentes da GNR deviam cair em cima deles. Mas não vou por aí: juro que não é por a vingança ser diminutiva de carácter, ou por as três frases anteriores parecerem retiradas da retórica da extrema-esquerda que detesta qualquer sinal exterior de riqueza. Não vou por aí, porque o atropelo da lei (como sinónimo da autoridade pública) é estimada pelo anarquista.

Lembrei-me do assunto quando assistia a um programa de televisão em que um automóvel transbordante de potência era ensaiado. As imagens filmadas do interior nunca o mostraram em alucinante velocidade. Não fosse o diabo tecê-las e um escrupuloso agente da autoridade puxasse dos galões, lavrando a multa provada pela transmissão televisiva. O respeitinho é muito lindo, sobretudo na terrinha em que ele é cultivado com tanta devoção.

O convite à ilegalidade ficou para depois. Quase no fim do programa, o jornalista debitava informações sobre o desempenho do automóvel. Retive que é capaz de chegar aos cem quilómetros por hora três segundos depois de ainda estar imobilizado. E pode atingir os duzentos e quarenta quilómetros por hora. Admito que estes programas não encham as medidas do "legislador" (esse feixe de cérebros que nunca tem rosto), da malta que trabalha na prevenção rodoviária e dos pançudos agentes da "brigada" (de trânsito). Sugiro que deitem um olho, mesmo que seja só de soslaio, para aguçarem o apetite. Não o mesmo apetite que me leva a ser espectador ocasional destes programas; apenas o pretexto para imaginarem o paraíso das multas passadas a quem anunciasse (em publicidade ou programas de televisão) a possibilidade dos automóveis dobrarem a velocidade máxima autorizada pelo código da estrada.

Vamos lá a pensar em sincronia com as distintas cabeças do "legislador", da malta da prevenção rodoviária e dos pançudos agentes da "brigada": o mal está a montante, nos fabricantes de automóveis. Quem os manda encharcar os motores de potência, convidando os proprietários a escorregarem o pé no pedal direito, tanto que nem sequer dão conta que já passaram – e muito – os limites de velocidade? A extrema-esquerda caviar seria pródiga em propostas radicais: por cada automóvel que saísse da fábrica em condições de violar o código da estrada, uma pesada multa para a empresa. Só me espanta como a seita socialista, sempre tão diligente em inventar regulações e coimas pesadas, não tenha inventado uma multa escondida no imposto pornograficamente elevado aos que ousassem comprar estes automóveis vitaminados. Até para dar razão à extrema-esquerda caviar, que acusa a seita socialista de ser muito sensível aos interesses do "grande capital".

Ai de quem invocasse o desmazelo pelos alicerces do Estado de direito (não se condena ninguém sem objectiva infracção – só para recordar). A seita socialista diria, naquele jeito habitualmente desastrado que se mistura com o auto-convencimento das suas invencíveis certezas: não foram apanhados em excesso de velocidade, mas com tantos cavalos debaixo do pé direito podem-no ser a qualquer momento. Multem-nos já.

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