5.2.10

Um atlas


As veias ardentes, a carne em fogo, os olhos fulminantes. Imersos na raiva incandescente. O descompasso com as coisas em redor. Os remos sem pás movem o barco à deriva, levado pelas águas errantes que dançam empurradas pelos ventos aleatórios. Ou a carne subitamente arrefecida, as veias lívidas, os olhos embaciados numa inércia medonha. No mesmo descompasso com as coisas em redor. 

Ser o que se é, sem concessões – a inadiável missão. A transfiguração à imagem das pessoais idealizações alheias é uma traição que vaporiza a genuína essência do ser. Podiam querer que mudasse por dentro, na conformidade com os belos modelos estabelecidos. Os oxalás arquitectados de fora para dentro são uma intrusão. A maior das infâmias. Uma faca que se insinua na carne, suaves cortes que parecem não passar da fina epiderme. Contudo, sangram-na, dolorosamente. Dizem, em apologia da intrusão, que é uma faca adocicada; que as cicatrizes são terapêuticas – depois delas, um todo mais harmonioso, a frondosa vereda do equilíbrio ensinado por almas apenas comprometidas com o altruísmo dos que desbravam caminho à transformação salgada.

O atlas, talvez empedernido, talvez possuído por uma teimosia irrecusável, declina as amáveis sugestões. A aprendizagem teve o seu tempo, o seu lugar. Depois da aprendizagem, já não faz sentido se os relâmpagos do desengano troam furiosamente. Há aleivosia quando passamos pela lupa dos cirurgiões das almas, os reconfiguradores de personalidades que atropelam a singularidade das individualidades como quem respira oxigénio. As luzes que os encomendadores de almas renovadas acendem são apenas sombras que se escondem detrás de plúmbeas, densas nuvens. Uma miríade de espelhos pulveriza as imagens em múltiplas direcções. As imagens de uns e de outros que se confundem numa arbitrária simbiose. Sobra a indiferenciação entre todos os que se confundem na constelação de espelhos reflectidos à exaustão. Até que sejamos todos feitos à medida de um alfaiate que toma as medidas pela média – nem que seja a média da mediocridade entronizada. A diferença passa a suportar o opróbrio criminoso.

E, todavia, em cada um há um atlas irreproduzível. As veias que latejam a pulsações diferentes, a carne que se toma por temperaturas que variam nos lugares e nas circunstâncias, os olhos de cores várias, com expressões de uma autenticidade ímpar. As palavras que saem com tonalidades sempre diferentes. As bocas, todas com diferentes sabores. O imparável império da subjectividade é a riqueza maior da espécie.

Quando o descompasso é ultrajante, não é pela transfiguração das almas que se acha solução. Sobra a dignidade do respeito do atlas resguardado em cada um. A honestidade de cada um se respeitar por si e diante do outro. Ou o harpejo final: os pés apontados para lados diferentes da encruzilhada em que se acham caso o desafio seja insuperável. Pois se um atlas individual é irrepetível, a pretensão de o moldar, como se tratasse de uma insidiosa bola de plasticina, é agravo sem remissão. Tratamo-nos como se fôssemos a peça mais central de todo o universo? Ah pois tratamos. E não é isso que somos, dentro de cada um de nós, peças inigualáveis? Admiti-lo sem escorregar para o censurável egocentrismo é o árduo desafio perante as poderosas convenções estabelecidas.

Mas o atlas fornece o ânimo, mesmo quando uma avassaladora descompensação esmaga o espírito nas águas mais lamacentas. É no atlas individual que se escondem os fragmentos da singularidade. O que nos torna peças únicas, irrepetíveis, a riqueza dessa singularidade toda capturada no respeito que os demais mostram ao nosso atlas pessoal. Não é uma concha protectora onde os intimidados se refugiam dos ventos lá de fora. Dos ventos que sopram agrestes e semeiam imponderáveis, desilusões, angústias, amarguras. De todos os vértices pontiagudos que ferem e levam tempo a ser cicatrizados.

Os atlas que somos são como são. São o que são. Amam-se. Tornam-se indiferentes. Por vezes, escorregamos na fricção de os odiar. Mas nunca, nunca, se tolerem as plásticas cirurgias que transfiguram as cores, os odores, o tacto de um atlas. Não há ultraje maior.

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