Interminável. Ou apenas persistente, se a lente não embaciar com o pessimismo irremissível. Dizem os almanaques, os que glorificam a voz do povo no altar da sabedoria, que é a chuva que se entranha nos ossos. Como se humedecesse as grossas camadas de roupa invernal, beijasse a epiderme e daí se infiltrasse na carne até chegar à marfínica ossatura. Lá fora, o dia cinzento demora-se, teimoso, levitado pela alvoroçada chuva que, diz-se, molha os tolos.
E por que molha os tolos esta chuva? Os outros, os muitos e muito certinhos, que transbordam no caudal da sanidade mental, passam pela água sem se molharem. Só os que foram acometidos por maleitas tratadas em divãs de psiquiatras é que se entregam ao catártico efeito da chuva molhada. É que também podíamos interrogar a supina sabedoria popular, desafiando-a a distinguir a chuva que molha da chuva que cai seca. Talvez a demência seja atributo da sabedoria exalada pela – dizem – insuspeita voz do povo.
E, todavia, a chuva que cai numa cadência certa, misturando-se com uma humidade que se insinua nos contrafortes da mais sólida ossatura, essa é a chuva que não larga o dia. Até para os aduladores da chuva, esta morrinha tem o condão de irritar espíritos sorridentes. Diria que se trata de uma encomenda da sociedade unida de todos os psiquiatras, tão ansiosos por verem o mapa coberto por um estado depressivo.
Não apetece rir. Não apetece sair de casa. Não apetece entregar o corpo ao ar rebarbativo que se pôs pelo capricho meteorológico que trouxe esta insistente, inoportuna chuva. Não há nenhum pedaço de lugar seco. Até as casas parecem invadidas pela humidade que se apoderou da atmosfera. Nas janelas, onde do outro lado continua a chuva entediante, escorrem gotículas que se condensam da humidade que derrotou o isolamento térmico. A chuva que molha os tolos deixa-nos tolos à medida que escoam as horas e a noite se promete, sem que o céu tenha sido desocupado pelas densas nuvens que o colonizaram.
O enfadonho dia da chuva que molha os tolos desafia até os que têm o juízo todo nas suas muito certinhas cabeças. Impacientando-os. Testa a tolerância com os elementos, a tolerância com os outros (que parecem inconvenientes), a tolerância com tudo. As árvores que se saciam nesta água abundante e fria alinham na desordem dos homens. Esboçam um largo sorriso, o comprazimento interior que as percorre pelos nutrientes que teimosamente caem do mirífico céu. E riem-se dos homens que andam macambúzios diante da intempérie suave. Não se trata de tempestade, pois aí os elementos ensaiam uma furiosa coreografia que tudo desarranja; a chuva que molha os tolos é uma discreta intempérie que aterra de mansinho e se demora por horas que parecem dias, intermináveis horas ou dias, que já nem o juízo parece encontrar a meada ao discernimento.
Nestes deprimentes dias tudo se questiona, até o que dantes era entoado em elegantes estrofes. Por esta altura de cansativa labuta da chuva que amofina, parece que tudo perdeu o seu significado – como se houvesse diferentes azimutes por onde estiolar o pensamento. Uma enxurrada de interrogações acompanha a enxurrada de água que nunca mais pára de cair do impenetrável tecto de nuvens. Nem quero saber que haja cientistas a ensinar a utilidade das águas em que a chuva que os tolos molha se transforma. Que se danem os lençóis freáticos, os rios alimentados, os vales sulcados pelos rios que se reinventam em férteis aluviões, a água como manancial de vida. O exagero descompensa.
Os excessos, perversos como ecoam dos lugares-comuns que nos pastoreiam, trinam os acordes de uma poderosa contrafacção dos sentidos. E somos de uma fragilidade assustadora diante da imparável maré de nuvens que o oceano regurgita em terra firme. Estamos à mercê dos caprichos do oceano. Quando ele se quer vingar, encharca-nos com uma amostra da imensidão de água salgada que acolhe no seu regaço. Só uma amostra produz o efeito abrasivo que é devido à chuva que molha os tolos. E somo-lo – tolos – pela antítese da catarse em que nos consome esta chuva interminável.
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