9.2.10

Puritanismo vitoriano, ou o altar-mor da encantadora hipocrisia?


O capitão da selecção de futebol inglesa perdeu a cabeça, cometeu adultério e perdeu a braçadeira de capitão – para além de ter ganho a maledicência e a censura da sociedade inteira. Que, como se sabe, é incapaz de dar as suas facadinhas no matrimónio.

Estamos num estado de coisas em que gente mediática, gente elevada aos píncaros da notoriedade, perde direitos cívicos. Não estou a sugerir que molhar a sopa fora do matrimónio seja um direito cívico. Só estou a afirmar que se trata de um assunto que só diz respeito aos directamente interessados. Apenas a eles, às pessoas envolvidas num triângulo mal resolvido. Se é assim como a pessoa mais anónima que passa por nós na rua (queremos lá saber se atraiçoa ou não), por que não há-de ser com as figuras públicas? A cidadania diminuída será o preço a pagar pela notoriedade – e mais ainda se forem "modelos" para a sociedade que gosta de se rever nesses arquétipos?

Criticamos os (dizem os alarves do costume) atrasados dos árabes por lapidarem em público mulheres adúlteras. E o ex-capitão da selecção inglesa, não está a ser discretamente lapidado em público quando se descobriu que se perdeu de amores (por assim dizer…) pela namorada de um colega da mesma equipa? Quem nunca foi ao Reino Unido não percebe o paroxismo do absurdo. Aquilo é uma rebaldaria pegada. Metem-se uns com os outros, trocam-se entre si, ora às escondidas, ora tirando o véu da ignorância ao que é "vitimado" pelo adultério (que umas vezes não perdoa o deslize, outras condescende e outras até alimenta o devaneio). E os dias continuam a passar uns atrás dos outros, como se nada de terrível tivesse acontecido. Era assim que deviam fluir os dias. Na terra que cultivou a traiçoeira moral vitoriana deviam aprender um adágio lusitano: não meter a colher em assuntos conjugais. E já que um "intruso" afocinhou onde não devia (mantendo vivos os parâmetros convencionais), que não se derrame o restolho do adultério por outros que sobre ele não deviam ser chamados a ditar sentença.

O mais esquisito é o clamor popular que fermenta quando os "modelos da sociedade" são apanhados em contramão. Há muitas vozes indignadas – ele é lá possível que aquele modelo de virtudes tenha sido domado pelas hormonas ferventes? Há muita gente boquiaberta, como se as infidelidades conjugais fossem um crime com direito a cadeia. Este clamor popular aparece emoldurado num curioso retrato: é como se toda uma sociedade se condoesse por ter sido encornada. (Em rigor: aquela parte da sociedade que se ofende e pede contas ao adúltero que o não devia ser.)

Estou ao lado das figuras públicas que têm a sua vida devassada (desconto aqueles que se esforçam por abrir a vida privada à intrusão geral). E não é por simpatizar com essas figuras públicas. Incomoda-me que não possam cometer os deslizes que o povo anónimo se alardeia. Enquanto ao povo anónimo ninguém pode apontar o dedo em sinal de reprovação, é o mesmo povo anónimo que exibe a tremenda indignação quando os "notáveis" são apanhados no cadafalso da lascívia com quem não deviam – e como é interessante, mas abjecto, um qualquer desconhecido meter o bedelho entre as pernas de quem se desvia para os passos trocados da traição à monogamia. Estes parâmetros deformados são a prova da cidadania diminuída dos famosos. Agora foi com John Terry, como ontem foi com Tiger Woods, como em todos os anteontem foi com tanta gente famosa que caiu em desgraça (pública) por não ter sabido ter a "cabeça no lugar".

A menos que os outros, os que não provam a maçã envenenada do adultério mas que o sonham fazer, se amotinem contra os famosos pescados na rede da infidelidade. E que se amotinem pela mais pura das invejas. Já sabemos o que o povaréu diz quando alguém desenha muito.

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