22.2.10

Os elementos transbordantes


A natureza ainda tem voz própria. Uma voz indomável. Terrífica, quando monta na crueza das cordas vocais e troa lampejos assassinos. Mas a natureza não é assassina. São só os elementos no seu jogo tão aleatório. Por vezes enfurecem-se. Revolvem-se nas entranhas, regurgitando chuva e vento, e depois uma torrente de água e lama e pedras e os restos que apanha pelo caminho. Para semear um cenário de devastação.

É quando a natureza retoma a sua voz rebelde. Por mais tentativas que façam para desenhar os limites dos cursos de água, a muita chuva despejada desce pelas encostas e alimenta as ribeiras. Elas vêm por ali abaixo, não estorvadas pelos limites que na alcantilada serrania são confinados pelos próprios elementos. Um caudal caótico de água misturada com lama e pedras e ramos de árvores faz-se às planuras, sossegando quando encontra a embocadura no mar (que entretanto se tingiu do acastanhado letal das ribeiras enfurecidas). Inúteis as artificiais estremas que a engenharia civil concebeu para domar a ribeira. Num ápice, centenas ou milhares de horas em desenhos nos estiradores dos engenheiros ficam reduzidos a nada. Ao mesmo nada em que a furiosa enxurrada dissolveu a paisagem.

As nossas fragilidades saltam à vista. Por mais que avancem os conhecimentos. E que se esbocem engenhosas soluções para domar os elementos. Eles apaziguam-se diante das obras que, dir-se-ia, são viperinas à sua essência. Temporariamente, apaziguam-se. Os elementos adormecem na placidez da engenharia humana. Convencemo-nos que os derrotámos com a definitividade das certezas que se embelezam com a sua própria assertividade. Tão científicas, essas certezas e, todavia, depostas em nada quando a natureza irada troa a sua voz. Um ilusório adormecimento. A natureza não renuncia. Aplaca-se, condescendente, no tempo que corresponder à miragem dos sentidos.

Quando se erguem da hibernação a que foram atados, os elementos vingam-se. Implacáveis, trepam nos contrafortes da cólera e transbordam as demarcações da mão humana – as demarcações que lhes são estranhas. A cavalgada insubmissa redescobre novos limites depois de derrotar os limites artificiais da humana e engenhosa mão. É o retrato do caos sobrante que destoa da harmonia, nos lugares onde antes houvera harmonia. As ribeiras transbordantes fazem o seu novo leito. Cansadas das demarcações encamisadas por onde correram anos a fio, despejaram uma enxurrada de calhaus nesse leito e galgaram para as imediações. Passaram a correr onde antes havia estradas.

Já extenuados da ira que consumira vidas e haveres, os elementos acalmam-se. Os despojos da destruição misturam-se com a paisagem redesenhada. Como a paisagem ganhou novos matizes, há gente forçada a recomeçar vida. Deram conta que os haveres foram tomados pela avalanche mortífera. Não sobrou nada – a não ser um amontoado de entulho lamacento que exige demorada limpeza. Entre o nada que têm entre mãos e a vida assaltada pela voragem enfurecida dos elementos, um mal menor.

Somos um pequeno, insignificante nada diante dos elementos quando eles acordam irados. Um impressionante depoimento de fragilidade. Da incapacidade para prever intempéries que desatam em cataclismos, quando a atmosfera resguarda surpresas que nem a mais científica geofísica consegue antecipar. E da impotência para levantar um dedo em forma de reprimenda quando os elementos crescem na imparável fúria interior e pulverizam tudo à sua frente.

Sem comentários: