A senhora eurodeputada alemã discursava. Exortava (com veemência) a sermos, nas universidades, "disseminadores" da ideia de Europa. Era o que mais faltava. Hipotecar a independência a recados de políticos, por mais "justa" que a causa pareça.
(De repente, quando ouvi a senhora eurodeputada desafiar os académicos a serem "disseminadores" da Europa, ocorreu-me uma palavra semelhante: inseminadores. Nós, os que ensinamos o que é e como funciona a União Europeia, a fertilizarmos as audiências com a semente profícua do europeísmo. Até por isto rejeito a exortação: falam-me em sermos "disseminadores", atalho logo para os inseminadores. De gado bovino. Um amigo que acompanha a função já ma descreveu. Garanto que a função é tão grotesca que ser inseminador do que quer que seja não está nos pessoais horizontes.)
Devo dizê-lo, simpatizo com a causa europeísta. A construção de uma Europa unida é o meu métier. É isso que ensino, é sobre a Europa que faço investigação. A Europa dá-me de comer. Daí a termos eurodeputados (ou políticos de outras paragens, seja nas instituições da União Europeia, seja nas autoridades nacionais) que desafiam os académicos a inseminarem os alunos, é abusivo. Uma das excrescências da investigação científica que por aí se faz é o engajamento a causas. A independência intelectual dos académicos é sacrificada ao serem instrumentos de interesses que estão fora das universidades. Acho lamentável que estes canais de cumplicidade se estabeleçam entre gente das universidades e o meio político (entre partidos e autoridades governamentais). Deste modo, as universidades põem-se de cócoras diante das agendas de políticos. É o fim da linha para a independência dos académicos. O abastardamento da universidade.
Que haja ingénuos que, sem darem conta, são moços de recados, é um problema que acontece aos aluados: só eles o podem resolver. Há outros que se acham pragmáticos e deixam o utilitarismo falar mais alto (os mais cínicos chamam-lhe oportunismo). Estes põem de lado a independência intelectual e, a troco de um soldo com a caução da União, prestam-se ao servicinho encomendado. A partir daí, não se limitam a passar informação com o selo da cientificidade. Transformam as suas aulas, e a investigação que desenvolvem, em comícios.
E podem perguntar: se simpatizo com a ideia de Europa, por que me recuso a ser um seu "apóstolo"? Começo pela ideia que acabei de expor: não admito instrumentalizar as aulas e a investigação. Nem me passa pela cabeça que o patrocínio material da União Europeia seja um torniquete à liberdade de expressão e à possibilidade de não assinar por baixo tudo o que a União faz. O impensável é ser uma espécie de pregador, para andar a espalhar a palavra, a "boa nova" da Europa.
Quem pensa que um académico existe para fazer recados destes está equivocado sobre o lugar, típico e ancestral, de uma universidade. Falo das universidades que cultivam a independência intelectual das pessoas que lá trabalham, as que honram o compromisso com o lugar que foi pensado para as universidades quando foram inventadas. Por este andar, ainda haveríamos de ver nascidas universidades com pouco recomendáveis pergaminhos: as universidades-alfaiate, criadas e financiadas por partidos ou interesses diversos (deixemos a universidade católica de lado, que esta terra só no papel é que passou a ser laica. Infelizmente). Universidades, diria, do pensamento de sentido único. Para doutrinar os adeptos. Os peões da causa logo que passassem, já de canudo na mão, o portão da universidade.
Pode ser do habitual mau humor que me macera, ou do irrecusável espírito de contradição. Escutava o discurso entusiasmado e cénico da senhora eurodeputada alemã e, naquela parte em que desafiou os académicos a serem pregadores da Europa, uma certa irracionalidade levantou voo em mim. Queria a senhora eurodeputada que, nas universidades, fizéssemos o trabalho em vez de suas excelências? Vá bater a outra porta. Que aqui, perante a insólita sugestão de sermos andarilhos a pespegar a palavra da Europa, começa a irromper um céptico da Europa. Desta Europa com histriónicos políticos que andam aos gambozinos.
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