Uma confluência de sentidos opostos. Uns são a tradução do restolho da noite. Arrastam os cansados corpos que gritam por repouso nos lençóis. Os outros, madrugadores, espreitam a alvorada. Alguns são corpos frescos que exibem a noite de sono repousado de que se desprenderam há minutos. Alguns, porém, são corpos já extenuados pela manhã, tisnados por tempestuosos pesadelos que furtaram ao sono o repouso que um sono deve ter.
No desfasamento dos ciclos, há uma perturbante ponte entre os que ainda não foram à cama e os que de lá retiraram a custo os seus corpos. O cansaço. Dos que arrastam extemporaneamente os corpos, padecimento de sonos mal dormidos. Sonos que parecem uma maldição inquietante, que prolongam as angústias diárias para os insondáveis meandros oníricos. O sono não lhes é um bálsamo. Levantam-se mais cansados do que estavam na véspera, quando os corpos derreados suplicavam por repouso. Eles olham para os jovens que regressam da demorada vida nocturna e invejam a vibrante energia que confunde os fusos horários. Dormem pouco, aqueles jovens noctívagos. E dobram a salutar inveja dos madrugadores que já passeiam cansaço inoportuno: dizem-lhes, os sistemáticos noctívagos, que o sono os tonifica.
Encontram-se, os noctívagos que ainda vão à cama e os madrugadores que a ela se furtaram há algum tempo. É uma dialéctica em busca de definição. Os madrugadores são os primeiros a beber a frescura do dia; os noctívagos que arrastam os corpos, exibem o dia mortiço que se prolongou até tocar com os seus dedos a madrugada que traz consigo o dia posterior. Ou também o contrário: os que chegam tarde ao dia seguinte, os estafetas que atam as cordas entre o dia anterior e o dia que nasce. Estendem o tapete que desembacia o dia prometido, o dia a que chegam primeiro os madrugadores. Podem estes estar equivocados. Foram os outros que se anunciaram na artificialidade das convenções horárias, eles que romperam primeiro o estalão da meia-noite. Eles, enfim, que pisam pela primeira vez o dia que se fez novo logo que os ponteiros do relógio dobraram a meia-noite.
Mas os madrugadores contrariam o equívoco. As artificiais divisões dos dias não contam para nada – são isso mesmo, artificiais. Devia ser o espelho da natureza a impor a divisória dos dias. Um dia devia acabar quando por fim o sol irrompesse no horizonte, tomando conta do lugar demoradamente ocupado pela noite. As palavras expõem tudo no seu portentoso valor: um dia nasce quando a alvorada desponta.
Se vingasse esta tomada de sentidos, os madrugadores sairiam vencedores do inútil pleito. Seriam eles os primeiros a chegar ao dia nascente. E mesmo quando se cruzassem com noctívagos errantes, aos madrugadores uma vantagem: eles despertam para a frescura matinal com os corpos revigorados por uma noite de sono. Os que ainda devem o sono ao corpo coincidem na alvorada desprovidos da frescura dos sentidos. A luz matinal que desponta, derrotando a imersão nocturna, fere-os. Chegam atrasados ao dia nascente.
É uma encruzilhada de vivências: o descompasso dos ritmos, como se os pessoais relógios tivessem cadências diferentes. Eu, que nunca fui noctívago, vejo os jovens que regressam a casa, quando a alvorada já se promete, e invejo-os. Desconheço se será cansaço dos hábitos que se entronizaram rotinas – pois que as rotinas, quando rompem o estatuto das espontâneas dependências (ou seja, quando os sentidos despertam para o lado até então oculto das rotinas), começam a desgastar o corpo e os sentidos. Porventura a inveja dos jovens noctívagos é isso mesmo: estar cansado dos ritmos que tomaram conta do relógio biológico que pauta o compasso do corpo.
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