18.2.10

E os capitalistas, não há quem os extermine?


Consumo com muita curiosidade as crónicas que um dos novos gurus da extrema-esquerda caviar escreve na última página do Público. Já andava com saudades de Rui Tavares, que há uns meses anunciou reclusão voluntária para tratar de tarefas académicas. Ontem vi-o de regresso aos textos que destilam aquelas certezas que só os néscios (os que dele discordarem) não conseguem entender. Exultei.

Ontem, Tavares denunciou um plano que se decompõe em quatro actos (como se fosse o guião de uma peça de teatro), um plano que mascara a opressão dos muitos não ricos pelos poucos muito ricos. Os muito ricos, até o aparelho do poder dominam. Porventura ensaboando as mãos dos gananciosos políticos com prebendas faustosas que desatam aquelas assinaturas que andavam presas na ponta da caneta ministerial.

Eis a sequência dos actos. Primeiro, aos muito abastados deferiu-se o pagamento de menos impostos, porque nos emprenharam os ouvidos que são eles que geram riqueza. Segundo, a alta finança "implodiu" por falta de sensata regulação do Estado sempre benfazejo. Tornou-se imperativo o Estado vestir a fatiota de salvador, acudindo à alta finança. Terceiro, a alta finança regressou às pornográficas distribuições de proventos sem termos saído da crise que ela causou. Para a conspiração ganhar contornos mais nítidos, no quarto acto aparecem os habituais economistas, a soldo (como "toda a gente" sabe) da alta finança, a espumarem raiva contra o falido Estado, esboçando um sombrio diagnóstico: isto só lá vai com "corajosas" reformas a que os reis da inércia (os sindicatos) se opõem com o habitual folclore de rua. Tavares deixa ao critério do leitor adivinhar a feição do quinto acto.

Peço desculpa se abastardei o raciocínio tão límpido com uns lampejos pessoais que apimentam a peça de teatro que Tavares contava na última página do Público. A um pobre de espírito (eu, para que não sobrem dúvidas) não é facultado o iluminado discernimento dos inspectores das demoníacas cabalas que oprimem os não ricos. Contudo, continuo a aprender de cada vez que Tavares escreve naquele jeito meio blasé, meio informal (que com a informalidade mais cativa a gentinha que não está virada para erudições espúrias e ininteligíveis). Ia sugerir que Tavares é catedrático da teoria da conspiração por revelar as congeminações dos tubarões da alta finança. Retiro em batida. A um pobre de espírito não é devida a ousadia de contestar os viveiros onde nidifica a mais pura intelectualidade.

De forma que estamos neste estado de coisas: os capitalistas, aqueles de punhos de renda e sempre, sempre de colarinhos brancos (mesmo quando a cor da camisa é outra), os tais que tanto amesendam no poder que em pezinhos de lã se apoderam dele, são avatares de uma satânica figura criada para oprimir a esmagadora, silenciosa maioria dos não ricos. Como dizia aquele artista popular de que não gosto (outra vez: não passo de um pobre de espírito que perfilha duvidosos padrões estéticos), "eles comem tudo, comem tudo e não deixam nada". Os sacanas.

Se pudesse ao menos sair do obscurantismo da insciência e me fosse dada a bênção (sem ofensa a Tavares – e, já agora, a mim também) de espalhar a sua verdade, saía às ruas a convocar as gentes todas para a rebelião contra a maralha dos ricaços. Sob ameaça de sublevação popular (a democracia está na rua – ah, que saudades!), daríamos duas opções aos mastins que nos comem até aos ossos. Ou iam a bem, ou iam a mal. Ou prescindiam do aluvião de privilégios que extraem das servis autoridades, inclinando-se perante a tutelar, dir-se-ia, divina figura do Estado, pagando impostos justos, partilhando os lucros com os trabalhadores que tanto oprimem, obrigando-se a fazer muito mais mecenato e a pagar generosas subvenções aos caritativos sindicatos e aos seus apóstolos, os sindicalistas que não devem ser assaltados pelo frémito do trabalho; ou a violência ecoava em todos os corredores, até que esta gentalha fosse exterminada e toda a sua abastança dividida pelo povo faminto.

Estou convencido: não há teorias da conspiração. A pandilha de sacripantas da alta finança tem que ser domada. A bem ou a mal, a escolha é deles. Só para mostrarmos (Tavares, eu, seu humilde seguidor, e todos os demais não ricos que alinharem na amotinação) que até somos tolerantes.

Sem comentários: