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Há sonhos que percutem, teimosos, um som aterrador que se prolonga depois da alvorada. Como se fossem martelos pneumáticos num demorado ruído que incomoda, naquelas obras intermináveis com um estaleiro permanente montado em lugar centrípeto. A imagem acabada de que tudo se mantém em construção. São sonhos de visitação assídua. Chegam e partem, chegam e partem. E de cada vez que partem, prometem regressar ao fim de um tempo breve. Nesta intermitência, os seus despojos fazem-se notar. São sonhos indeléveis na ossatura dos dias acordados.
Um sonho recorrente. O inexplicável ensandecimento de andar nu pelas ruas, angustiado por não saber onde ficaram as roupas, angustiado por não saber como foi parar à rua sem roupas. Uma sensação ambivalente. Ora pessoas que passam e olham, perplexas. Ora as que passam indiferentes, como se fosse um fantasma ou uma irrelevância. Ou, talvez, na improbabilidade de alguém andar nu pelas ruas, nem notam a bizarria. Porventura uma miragem, ou o acosso da fértil imaginação que povoa a mente com hologramas da realidade.
Um sonho aflitivo. Sem dar conta, apanhado no meio de uma movimentada rua no desconforto da ausência das roupas. Nem era tanto pelos pés açoitados pelo solo enrugado que o incómodo se fazia doer. Ao fim de algum tempo de errância à procura da saída do labiríntico sonho, sentia os pés sangrados pela desabituação de os entregar desnudados às imperfeições do chão. Não eram essas as dores que contavam. Era a vergonha de ter desaguado nu nas movimentadas ruas da cidade. Afinal, os outros contavam.
Procurava refúgio, um canto recolhido onde se pudesse esconder da perplexidade de uns, da troça de outros, da indignação de alguns. Tomava consciência de algo pela primeira vez: no sobressaltado percurso pelas ruas da cidade, errava sem destino. Subitamente, as ruas da cidade avivavam o paradoxo de um lugar desconhecido. Contudo, conhecia aquelas ruas como as suas mãos. As ruas da sua cidade. Atordoado, achava-se estranho num lugar familiar. Ainda mais.
Prosseguia a correria desenfreada, demencial, de cada vez que esbarrava em pessoas e na sua reacção ora atónita, ora indiferente. Por mais que corresse, não sentia os dedos do cansaço a acariciar o dorso. Nem o ar desagradável do entardecer outonal arrefecia o corpo desnudado. Atirava-se para as esquinas que pareciam mais sombrias, de ruas que se prometiam desabitadas. A rua que parecia estreita revelava-se ampla, marejada por uma multidão que parecia ter marcado encontro naquela rua e àquela hora para ser testemunha de um enlouquecido desassossego.
Era a rua sem saída. As paredes das casas carcomidas pela humidade pareciam inclinar-se na direcção do solo, deixando à mostra uma réstia do céu. Impediam que a chuva que começara a cair depressa encharcasse o corpo. Naquela rua já só estavam pessoas que não eram anónimas e desconhecidas como nas outras. Já só estava gente intimidada pela loucura em forma de nudez. Reconhecera a rua que à entrada soara desconhecida, como reconhecera as pessoas paradas diante de si. Impassíveis, a olhar para uma nudez inverosímil. Recebiam as finas gotas de chuva no rosto, algumas gotas sopradas pelo vento desarranjado espetando-se nos olhos como discretas farpas, coalhando o horizonte. A fineza das gotículas ao sabor da coreografia errante carregava uma discreta neblina que descia pelo apertado funil que os prédios encardidos inclinados sobre si deixavam entrever.
E não sei se fora por estarem todos a ficar encharcados que alguém, por fim desligado da inércia que se tinha apoderado de todos, despiu um casaco. Aproximou-se do homem nu, cabisbaixo a verter lágrimas de desespero que se misturavam com a fina chuva que encharcava o solo. Pondo fim ao sobressaltado sonho.