31.3.10

Um sonho em sobressalto


In http://www.dyscalculiaforum.com/images/embarrased.JPG
Há sonhos que percutem, teimosos, um som aterrador que se prolonga depois da alvorada. Como se fossem martelos pneumáticos num demorado ruído que incomoda, naquelas obras intermináveis com um estaleiro permanente montado em lugar centrípeto. A imagem acabada de que tudo se mantém em construção. São sonhos de visitação assídua. Chegam e partem, chegam e partem. E de cada vez que partem, prometem regressar ao fim de um tempo breve. Nesta intermitência, os seus despojos fazem-se notar. São sonhos indeléveis na ossatura dos dias acordados.
Um sonho recorrente. O inexplicável ensandecimento de andar nu pelas ruas, angustiado por não saber onde ficaram as roupas, angustiado por não saber como foi parar à rua sem roupas. Uma sensação ambivalente. Ora pessoas que passam e olham, perplexas. Ora as que passam indiferentes, como se fosse um fantasma ou uma irrelevância. Ou, talvez, na improbabilidade de alguém andar nu pelas ruas, nem notam a bizarria. Porventura uma miragem, ou o acosso da fértil imaginação que povoa a mente com hologramas da realidade.
Um sonho aflitivo. Sem dar conta, apanhado no meio de uma movimentada rua no desconforto da ausência das roupas. Nem era tanto pelos pés açoitados pelo solo enrugado que o incómodo se fazia doer. Ao fim de algum tempo de errância à procura da saída do labiríntico sonho, sentia os pés sangrados pela desabituação de os entregar desnudados às imperfeições do chão. Não eram essas as dores que contavam. Era a vergonha de ter desaguado nu nas movimentadas ruas da cidade. Afinal, os outros contavam.
Procurava refúgio, um canto recolhido onde se pudesse esconder da perplexidade de uns, da troça de outros, da indignação de alguns. Tomava consciência de algo pela primeira vez: no sobressaltado percurso pelas ruas da cidade, errava sem destino. Subitamente, as ruas da cidade avivavam o paradoxo de um lugar desconhecido. Contudo, conhecia aquelas ruas como as suas mãos. As ruas da sua cidade. Atordoado, achava-se estranho num lugar familiar. Ainda mais.
Prosseguia a correria desenfreada, demencial, de cada vez que esbarrava em pessoas e na sua reacção ora atónita, ora indiferente. Por mais que corresse, não sentia os dedos do cansaço a acariciar o dorso. Nem o ar desagradável do entardecer outonal arrefecia o corpo desnudado. Atirava-se para as esquinas que pareciam mais sombrias, de ruas que se prometiam desabitadas. A rua que parecia estreita revelava-se ampla, marejada por uma multidão que parecia ter marcado encontro naquela rua e àquela hora para ser testemunha de um enlouquecido desassossego.  
Era a rua sem saída. As paredes das casas carcomidas pela humidade pareciam inclinar-se na direcção do solo, deixando à mostra uma réstia do céu. Impediam que a chuva que começara a cair depressa encharcasse o corpo. Naquela rua já só estavam pessoas que não eram anónimas e desconhecidas como nas outras. Já só estava gente intimidada pela loucura em forma de nudez. Reconhecera a rua que à entrada soara desconhecida, como reconhecera as pessoas paradas diante de si. Impassíveis, a olhar para uma nudez inverosímil. Recebiam as finas gotas de chuva no rosto, algumas gotas sopradas pelo vento desarranjado espetando-se nos olhos como discretas farpas, coalhando o horizonte. A fineza das gotículas ao sabor da coreografia errante carregava uma discreta neblina que descia pelo apertado funil que os prédios encardidos inclinados sobre si deixavam entrever.
E não sei se fora por estarem todos a ficar encharcados que alguém, por fim desligado da inércia que se tinha apoderado de todos, despiu um casaco. Aproximou-se do homem nu, cabisbaixo a verter lágrimas de desespero que se misturavam com a fina chuva que encharcava o solo. Pondo fim ao sobressaltado sonho. 

30.3.10

Insólitos inimagináveis


In http://4.bp.blogspot.com
Os olhos estão atentos. Precavidos contra as ameaças. Avançam com atenção redobrada sobre os que julgam ser a ameaça latente. São eles que ficam sob o ponto de mira. Os costumes mandam dizer que a precaução sempre foi boa conselheira. O mal está quando os rombos no que os olhos zeladores protegem partem de quem não se esperava. Os olhos não se podem desdobrar em todos os sentidos. Oxalá tivessem o condão de tudo alcançarem, como se fossem polvos a atirar os oito tentáculos em todas as direcções, cortando pela raiz os ensaios dos meliantes. A surpresa, às vezes, aterra de mansinho. E damos conta que são apanhadas no alfobre do crime as pessoas mais improváveis de o serem – criminosas. Se calhar faz sentido pressagiar que nestes tempos amalucados ninguém, mas mesmo ninguém, está acima das suspeitas. De uma vez por todas, somos todos iguais. Até na propensão para o delito.
Eis a insólita notícia: uma magistrada do ministério do público apanhada a roubar roupa numa loja (uma gabardine e uma camisa). Ou, diremos em condescendência da intocável magistratura, que apenas se esqueceu de pagar. Talvez a senhora seja uma irremediável distraída. Estaria a pensar num dos muitos casos que aterram na sua secretária. E, tão afogueada pela soberana função de levar do tribunal à cadeia os delinquentes da praça, saiu da loja sem passar o vestuário comprado pela caixa registadora.
Um dos males dos tempos modernos é que inventam geringonças para tudo e mais alguma coisa. As lojas são precavidas contra distraídos, cleptomaníacos e ladroagem em geral. Quem se esquecer de passar pela caixa registadora não vai longe. Um sonoro alarme à saída da loja denuncia a tentativa. Todos os olhares caem sobre quem se esqueceu de pagar à saída da loja. Os olhares e os seguranças, num abrir e fechar de olhos. Quando dão conta, já têm julgamento marcado em tribunal.
Por menos de cem euros – o valor da gabardine e da camisa que a senhora magistrada ia levando sem pagar – ficou com o rótulo de cleptomaníaca colado ao rosto. Os seus pares tomaram o assunto entre mãos. Foi suspensa dois anos. Se fosse outra pessoa, um comum dos mortais, o cadastro ficava manchado com esta nódoa negra. Mas a senhora faz parte da magistratura. Afinal há quem seja mais igual entre os iguais. E não se belisca a reputação da magistratura. Podiam isolar a ovelha ranhosa e, talvez em manifestação de humildade, admitir que a senhora se sentasse no lugar onde estão sentados aqueles que ela estava acostumada a acusar (o banco dos réus). Mas não. Não se toca nos intocáveis. Escapou com dois anos sem apontar o dedo acusador aos delinquentes da praça. Para os seus colegas que a julgaram com tanta condescendência, ficou provado que aquilo não foi roubo: foi apenas uma lamentável distracção.
Esta teoria podia explicar o inesperado comportamento da senhora: de tantos crimes passarem pela sua secretária, ela ficou contagiada. É o que acontece quando os planos se confundem, como se a certa altura já não fosse possível discernir o que é sonho e o que é realidade, uma e outra tomadas pelo mesmo padrão. Ao ler a notícia, vinha lá que foram feitos testes psicológicos. A senhora magistrada não era cleptomaníaca. O que torna o episódio ainda mais insólito.
Quando os dois anos passarem e for reintegrada, a senhora magistrada continuará a acusar meliantes por crimes iguais aos que ela cometeu. Ora, se me acontecesse sentar no banco dos réus por semelhante acusação e desse de caras com aquela senhora magistrada que, implacável do lugar de onde o ministério público acusa de dedo em riste, me acusasse de crime idêntico ao que ela tinha cometido, diria que tinha todo em gosto em que a colega de funções fosse a acusadora oficial. Ironia do destino, talvez pudesse tirar partido da condescendência da senhora magistrada.

29.3.10

Aparelhos dentários


In http://novohamburgo.org/colunistas/odontologia/img/v_dentao3.jpg
Novos, sobretudo novos. Mas mais velhos também. Quando se pensaria que os dentes dos mais velhos já não tinham remédio, entortados e a caminho da recessão natural do envelhecimento. Usam aparelhos dentários que corrigem o encavalitamento dos dentes. Uma rede metálica apara a andadura dos dentes. Os sorrisos afeiam-se.
Sinal dos tempos: quando era criança e os aparelhos dentários não tinham a profusão de agora, quem os usava envergonhava-se de os ter. Se nessa altura já tivesse sido inventado o conceito de bullying, os miúdos que tinham a desdita de carregar aparelhos dentários eram vítimas preferidas dos azoados que se especializavam no bullying. Há que descontar os custos dos tempos de antanho, quando a tecnologia ainda marcava passo pela cadência da tartaruga e aqueles aparelhos que se punham para corrigir más posturas dentárias eram pesados e inestéticos. Eu diria, ainda mais inestéticos.
São os sinais dos tempos que se puseram. Dizem-me que os aparelhos que desenfeitam muitas bocas são diferentes dos aparelhos da minha infância. Mais leves, materiais mais resistentes, mais eficazes na função. E os dentistas de agora devem ter aprendido marketing na universidade. É que também me dizem – agora do lado de quem viu os dentes emprenhados com a armadura metálica – que os dentistas são mestres no convencimento dos pacientes. Explicam por a mais b que aqueles dentes vão entortar fatalmente se não se puser o aparelho que corrige encavalitamentos precoces de dentes. Para piorar o diagnóstico, pintam cenários muito sombrios caso o paciente seja renitente em seguir o conselho clínico.
E sim, parece que os modernos dentistas aprenderam marketing até pela técnica de vendas agressiva que usam: como o adorno metálico que se prende aos dentes é coisa para custar muito dinheiro, congeminaram esquemas de crédito e facilidades de pagamento. Os pacientes – ou, dir-se-ia, os clientes? – ficam desarmados. É pegar ou largar. Quem sabe se na anestesia não vai misturada uma substância hipnótica que comanda a vontade dos pacientes, só capazes de dizerem sim à proposta de negócio.
O negócio prospera. A atestar pela quantidade de bocas que, quando se abrem, mostram a armadura metálica que aprisiona os dentes ao alinhamento desejado. Prova que os modismos são isso mesmo – modismos que vão e vêm com os ventos sazonais. Aqueles miúdos que foram motivo da zombaria alheia sentem-se injustiçados? Se não forem movidos pela extenuante vingança, pelo contrário: fez-se justiça anos mais tarde. Olham para a profusão de bocas desenfeitadas com os talvez só um pouco menos inestéticos aparelhos dentários, olham em redor e notam a indiferença geral. Na sua imensa bondade, sentem-se reconfortados por ninguém troçar dos que trazem um freio metálico nos dentes.
Não interessa que os puristas ensinem que a subjectividade impede as ilações categóricas. Arremeto contra isso para fixar um juízo – que, de tão pessoal, vale o muito pouco que vale: aquelas bocas atadas pelo metálico freio da armadura povoam os rostos com um travo de feiura. Afortunadamente, o modismo retirou carga negativa aos aparelhos dentários. As pessoas que os trazem riem sem preconceito, falam sem vergonha, bocejam quando estão distraídas. Se ficar provado que os dentistas são mais dentistas do que especialistas de marketing, haveremos de lhes prestar tributo quando um lustro de tempo passar e as bocas (já desapossadas da armadura dentária) tiverem dentes mais alinhados. E houver menos visitas aos dentistas por causa dos problemas atrás de problemas semeados por um encavalitamento dos dentes. E se, afinal, os dentistas não forem tão especialistas de marketing como se pensava?
Nos interstícios da feiura das bocas desenfeitadas com armaduras metálicas, um par de perplexidades: como serão os beijos lânguidos dados por estas bocas? A outra perplexidade fica nas entrelinhas, para não ser acusado de obscenidades em forma de texto...

26.3.10

Plebeus e elites


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgchzPf8VWb1JCe9L12xxiqtulo77iT0zGzZVpQeaJ76E-WnVSWAd6UP9a7AEF_5A43pKQRCFFi-vHAK2BkHikk4EIAiKqIrJ7_uSlWRF1igFnEyMU_LQ7ghRcVZOsOptp6eAhd/s400/qi+logo.jpg
Ah, a adorável superioridade de casta, dos que lambem o caixão da razão perfumado pela sua incontestável sapiência! Não se juntam à ralé. Por temerem o contágio das incautas almas que povoam a ralé?
Oh, incoerência fatal, dissertam sobre a democracia. Deificam-na. Peroram sobre igualdade – a alma mater da democracia. Inadmissíveis, as diferenças de estatuto. Cabemos todos no mesmo caldeirão. O filho do senhor doutor e o bisneto do operário metalúrgico. O senhor engenheiro e a mulher-a-dias. A teoria manda ensinar assim. E ai de quem apostrofar a igualdade, acusando-a de ser uma louca encenação de gente que faz de conta que o mundo é diferente. Levam logo com rótulos desagradáveis, esses desmancha-prazeres que profanarem o lugar sagrado da igualdade.
O mal está quando tropeçamos na incoerência que aparece pela frente, essa enorme estátua imóvel que, por imóvel ser, teimosamente não sai da frente. Os patuscos que tudo isto ensinam esquecem a aplicação da teoria. A teoria fica-se pelas almofadas do discurso, não se liberta das suas fronhas. E não é que às vezes o povo ignaro tem razão nos adágios que constrói? Lá vai um, a esbarrar de frente contra a sobranceira dos vaidosos da erudição: olhemos para o que eles dizem, mas esqueçamos o que fazem. Branqueemos o divórcio entre palavras e gestos. Senão, a sua tremenda aura intelectual, o manto de erudição que adoram esbofetear nos rostos uns dos outros (como se andassem entretidos num torneio particular para ver quem exibe mais cultura, ou para ver quem chega mais alto num espúrio campeonato de Q.I.), o manto de erudição dissolve-se na onanista inanidade de tanta erudição.
Caem os parentes à lama se alguém sussurra a possibilidade de se juntarem à ralé. Mas que ninguém faça notar que se untam na incoerência das suas próprias teorias por se recusarem habitar debaixo do mesmo tecto, por temporário que seja, com os plebeus. A igualdade é para os outros. Eles assim o determinam, os gurus da grotesca (auto) iluminação do intelecto. Devem ter um espelho muito grande lá em casa. Um espelho mágico que faz a densitometria do intelecto. Mas, afinal, quem os condena na sublimação das tão elevadas capacidades intelectuais, nas carradas de cultura que absorveram à medida que cresceram (para cima e para os lados)? Existe força mais impenetrável do que a força da razão?
Até se pode dar o caso de terem de si mesmos uma imagem que ultrapassa a sua dimensão. O que interessa não é o pulsar dos outros; é o juízo do mirífico espelho de onde se fitam sem cansar. Quem lhes atribui o estatuto de sumidade? Ajuízam em causa própria. Desse modo, somos todos luminárias. Mas então que saibam: já não há fronteiras entre os plebeus e as elites do intelecto. Sem darem conta, caem na trapaça da democracia. Da democratização dos saberes que permitiu cavalgarem ao púlpito a que jamais chegariam se fosse como dantes, quando só as oligarquias ditavam lei e fixavam conhecimento.
Mas se tudo é assim, como se ensaboam na arrogante elevação ao palco nunca pisado pelos (por eles catalogados) plebeus? Ah, como são obscenas as armadilhas da soberba. É tanta a gula da erudição, tamanha a sede de se fazerem notar como protagonistas dos saberes, eminentes e respeitadas personalidades das ciências, que estão à espera de ver estendida diante dos seus pés uma aveludada passadeira vermelha que massaja os pés à medida que por ela avançam. Os pés e, acima de tudo, o ego dez mil vezes maior que toda aquela erudição que carregam, ostensivamente, às costas.
E eu, em permanente contramão com o povaréu, vejo estes eremitas do conhecimento a destilar a sua fanfarrona erudição, e só me apetece ser, e sempre, plebeu.

25.3.10

“Read my lips”


In http://verblogando.files.wordpress.com/2008/03/nick_henderson_lupa.jpg
Um anátema da era que é esta: a cisma em vasculhar a intimidade dos outros. Às vezes, proto-figuras públicas vendem a alma ao diabo para que a sua intimidade seja escancarada nas páginas da especialidade. Outras vezes, um largo exército de inocentes apanhado na esparrela dos modernos inquisidores que se servem de potentes máquinas fotográficas, ou de microfones de longo alcance, para revelar o que sussurram as figuras públicas.
Que interessa aquilo que segredam, se o que segredam, sendo segredo, devia estar vedado à sanha dos alcoviteiros? Não há distinção de grau. Enlameiam-se nisto os alcoviteiros que espiolham as imagens em câmara lenta para ler nos lábios as palavras segredadas, ou os que se excitam ao descobrirem o que foi dito nos supostos corredores do segredo. Como não escapam à lama os alcoviteiros que desatam numa correria para o quiosque onde repousa a revista da especialidade que desvenda o que tinha sido dito entre dentes. Entoe-se a pergunta outra vez: o que interessa o que as pessoas dizem no recolhimento da privacidade?
Ontem foi o vice-presidente dos Estados Unidos apanhado numa, dizem, comprometedora gafe, quando celebrava com Santo Obama uma vitória legislativa. De repente a memória tropeça noutros exemplos que fizeram gáudio da imprensa que se desunha por sangue. Um primeiro-ministro, coitado, exultante por acreditar que vai ficar nos livros que registam a história da União Europeia, embriagado pela assinatura do Tratado de Lisboa, festejando com o compadre presidente da Comissão Europeia no popularizado (e revelador) “porreiro, pá”. Um ministro da administração interna numa reunião europeia a tecer comentários que tinham tanto de jocoso como de inveja por causa do presidente francês, esse “D. Juan” (dito pelo ministro), ter conquistado quem conquistou. Na semana passada, um irritadiço (e, por sinal, muito irritante) deputado socialista, Lello de sua graça, a exigir medidas que precatem a privacidade dos senhores deputados, pois andava pelo parlamento um fotógrafo a tirar fotografias ao que o Lello deputado via no seu computador pessoal.
Agora entendo quando vejo personalidades públicas a falar ao telemóvel ao mesmo tempo que tapam a boca com a outra mão. Ou os treinadores que, no banco de suplentes, sussurram a táctica para o adjunto, escondendo a boca enquanto o fazem. Ao início, embrenhado naquela ingenuidade que não me larga, interrogava-me se esta gente que escondia a boca não andaria com problemas dentários. Quem sabe, podia ser que tivessem tirado a dentadura e, enquanto esperavam pela de substituição, envergonhavam-se por aparecerem desdentados. Afinal é outra coisa. Escondem a boca para que os “spotters” não façam uso das potentes câmaras e dos avançados dispositivos que desdobram as imagens em milionésimos de segundo, só para trazerem a público o que devia ser privado. Neste estado da arte, desconfio que a tecnologia cavalga contra a privacidade das pessoas.
Nesta era em que estamos, ser figura encavalitada na notoriedade é muito perigoso. Para começar, perdem o anonimato – esse bem sem preço. Mas o pior é a exposição aos coscuvilheiros que fazem da coscuvilhe forma de vida e alimentam o alcoviteiro imaginário de uma turba desapossada de imaginação e de interesse pela sua própria vida. Vidinha, portanto.
Há quem se especialize nisto. Puxam o som aos microfones alados no largo espectro sonoro. Esquadrinham as imagens em câmara lenta para lerem as palavras nos movimentos que os lábios entretecem. E, quando se pensava que os pouco recomendáveis serviços secretos estavam confinados a um lugar esconso, afinal parece que estão espalhados por todo o lado. Nem que sejam agentes secretos sem a protecção da castidade do Estado, mas agentes secretos à mesma. Atropelando a privacidade de quem, pelos vistos por um mistério insondável, a mereceu perder.
Por que não se decreta de vez a nacionalização da vida privada de toda a gente?

24.3.10

E as claques, não há quem acabe com elas?


In http://1.bp.blogspot.com/
Um espectáculo grotesco. Com palco gigantesco, que as televisões adoram enfiar desordem e sangue e bastonadas da polícia nos olhos dos espectadores. As claques, imersas na bestialidade do tribalismo acéfalo, querem ser as protagonistas de um espectáculo de que seriam apenas espectadores anónimos. Primatas, entretêm-se à pedrada, a insultar quem passa e o adversário – o adversário confundido com inimigo, como se a relva fosse testemunha de uma batalha letal.
A procissão de violência, a constante. Por onde passam, têm que deixar impressões digitais. A boçalidade dos argonautas da bola sinaliza-se na violência, na destruição, em amedrontar quem não pertence à seita. Meliantes como forma de vida. Os cabecilhas nem vêem o jogo: passam o tempo de costas voltadas para a relva a estimular as hostes. São deles as palavras de ordem, entoadas com a voz de comando de quem empunha um megafone. As palavras de ordem: normalmente, insultos ao adversário, pregões assassinos em que a palavra “morte” se solta com uma facilidade exasperante.
Leio por toda a parte gente insuspeita a pedir a extinção destes ajuntamentos de energúmenos. Os clubes omitem-se. É sintomático. Ainda acreditam que estes grupelhos de gente mal educada são o detonador dos feitos dos atletas. Através desse silêncio, os clubes são coniventes com os maltrapilhos que semeiam o terror por onde passam. As funestas criaturas acreditam que o terror fixa a sua superioridade. É como se fossem senhores dos lugares por onde andam. Vejo alguns aqui pelas ruas da cidade, garbosos na ostentação dos sinais de pertença à claque. São os novos feios, porcos e maus. De nariz empinado e fuças de poucos amigos, a rimar com a vestimenta reveladora da adoração religiosa pela claque e pelo clube (por este ordem).
Se não bastasse a hegemonia do futebol, como se quase tudo se reconduzisse aos feitos e às decepções de uma bola aleatória a entrar numa baliza, ainda apanhamos de frente com estes ajuntamentos de inúteis. Eles, que nem actores secundários deviam ser – meros figurantes à roda do palco onde os atletas procuram os golos –, vezes de mais tomam o palco pelas más razões. A violência, a única linguagem que sabem falar. Pesporrência que soa a covardia. Pois só são corajosos quando actuam em matilha. Há maneira pior de se ganhar visibilidade?
A interrogação que dá título ao texto é um equívoco para quem se agarra ao lema “é proibido proibir”. Caímos no caldeirão das excepções? Talvez seja preciso lamentar funerais para remediar depois do tempo. Nessa altura, já andará muita gente de dedo acusador em riste à cata dos responsáveis que não souberam (ou não quiseram) ter a lucidez da prevenção. Nessa altura, talvez os clubes ponham os pés no chão. E entendam que estes energúmenos não são de boa rês, nem são o mágico ingrediente para as façanhas dos atletas. E, nessa altura, talvez volte a ser seguro e confortável ir a um estádio ver um jogo de futebol.
Na televisão desfilava o cortejo de aberrações trajando os sinais identitários da barbárie, urrando e dando coices em quem aparecesse pela frente. Devem gostar de adrenalina. É que logo a seguir aparece a polícia de choque a dar uso aos bastões. Dei comigo a pensar. Que, por uma vez que seja, suspendo a filosofia que renega a violência das autoridades para exultar com cabeças rachadas que iam a caminho do hospital. E, de repente, notei uma curiosa semelhança entre estas claques e as claques organizadas de uma “jota” partidária que, uns dias antes, também andou aos urros no congresso do partido respectivo.
O grotesco pode aterrar à bruta, ou em pezinhos de lã. Nunca deixa de ser grotesco. E excrescência.

23.3.10

“Desgraçadismo”



In http://www.emmacarlson.com/emmablog/images/sad_guy-thumb.jpg
Os tipos que adoram vitimizar-se em público, como se fossem a ralé da espécie. Tão maus, tão odiáveis, tão desaconselháveis como companhia. E tão sequiosos de comiseração. Na aparência, a antítese do narcisismo. Mas, no fundo, esta auto-fobia não passa de um narcisismo com contornos diferentes. Narcisismo revolvido pelas entranhas. E, contudo, um narcisismo. Quando escrevem textos pungentes de auto-mortificação, como quem anuncia aos quatro ventos “não olhem para mim que só encontram desgraças”, lá no seu íntimo saberão que está é a receita para convocar muitos olhares.
Não sei de que patologia se trata. Ignoro que apertadas paredes percorreu a sua labiríntica adolescência. Haverá ali um viveiro de traumas que aconselham expiação pública? Terão algum prazer interior em mostrar as pungentes pessoas que são, só para entrarem no reservado escol das injustiçadas vítimas de qualquer coisa, só para cativarem a compaixão alheia?
Isto mete-me confusão. Estas almas penadas a passearem a sua desgraçada existência em textos que puxam à lágrima. Dirão que não pretendem que os leitores escorram lágrimas de pena. Não ignoram que o que mais abunda por aí é gente que amolece ao esbarrar em histórias que são um pesado fardo de adversidades. Não acredito que não saibam, no seu íntimo, que o interminável rol de calamidades interiores desata a colectiva solidariedade quando os outros tomam conhecimento que tamanha alma penada povoa o planeta. Se não se quisessem exibir como uma das piores criaturas à face do planeta, trariam em forma de letra publicada as suas histórias tortuosas? O que vai na cabeça de alguém que se expõe como se mostravam outrora as aberrações em circos, ou os tristonhos animais selvagens no cativeiro de um jardim zoológico?
Não digo que cada um não se sinta acossado por interiores fantasmas que desatam dúvidas. Agora só falo por mim (mas estendo a interrogação aos demais): quem não é assaltado por uma desconfortável sensação de andar alijado dos sentimentos agradáveis da existência? Nem que seja por instantes, naqueles dias em que inexplicavelmente o mundo parece ter acordado ao contrário e todas as forças parecem conspirar contra nós. Aposto que até as mais narcísicas personagens, aquelas que se olham demoradamente ao espelho enquanto começam a manhã com a rotina da auto-glorificação, até estas se entregam a momentos de enjoo pessoal. Daí a prolongar esses instantes fazendo deles a norma do tempo, é o espaço que medeia entre um devaneio e a patologia.
As doenças carecem de terapia. E eis que começo a destapar o enigma – pois que de um enigma se trata quando alguém põe a nu, sob a forma de letras publicadas, as desgraças em que macera. Verter as desgraças que os consomem em palavra para os outros lerem é o tratamento a que se entregam. É preciso coragem. Nestes tempos em que individualismo e egocentrismo são vistos como uma mesma coisa (o que não é acertado), o que mais se vê por aí é gente a agigantar a imagem que tem de si mesma. Este é o tempo de todos os narcisismos. Do triunfo da sobrevalorização individual, às vezes elevada a níveis grotescos, talvez como válvula de escape para obnubilar as fraquezas que não podem ser expostas.
Os que adoram ser olhados pelos outros como coitados escapam ao narcisismo que tem vingado como forma de estar. Há neles uma coragem que merece aplauso. Ao menos fogem da maré dominante onde flutua um numeroso rol de luminárias, só gente brilhante – pelo menos para o privativo espelho em que praticam a auto-louvação matinal. Só que a uma maré cansativa opõe-se a contra-maré que padece do mesmo mal. Os poucos intérpretes do “desgraçadismo” enformam a fadiga pelo lado contrário. De tanto convocarem a piedade dos que vertem lágrimas de desconsolo pela desdita alheia, emprestam-se ao lado oposto do narcisismo. Que também é um narcisismo.

22.3.10

Catch me if you can


In http://tudehistoria.blogspot.com/2009/10/origem-da-expressao-brincar-de-gato-e.html
Dantes – há um ano – no auge da crise, os “capitalistas” que tivessem dinheiro em off-shores viam dedos em riste apontados contra os seus rostos. Agora, o governo virou o bico ao prego. Tirou da cartola uma campanha de sedução dos capitais espalhados em demoníacas off-shores. Promete tratamento favorável quando chegar a desagradável cobrança de impostos. Não o diz com todas as letras. O governo deixa a mensagem escrita nas entrelinhas: agora que é tão imperativo salvar a pátria do desastre financeiro, esta era a ajuda que a gente mais endinheirada podia dar. O governo confia na generosidade dos “capitalistas” que ainda há pouco eram apontados a dedo. E na sua inteligência (senão punha lá com todas as letras: “urgente, o benquisto Estado precisa da sua ajuda, senhor(a) abastado(a)”).
O que me leva a uma mão cheia de interrogações. Alguém explica o que motiva estes felizardos que semeiam abastança nas off-shores a repatriarem as fortunas? Se podem continuar a pagar zero de impostos, por que hão-de trocar o sossego pela sujeição ao fisco batoteiro? Conta o governo que estes “capitalistas” de repente sejam assaltados por um brio patriótico? Terá chegado ao conhecimento das personagens que por lá andam, ingénuas, que estes “capitalistas” nada são dados a fazer generosidade com o seu (dinheiro)? O governo acredita em duendes e na Branca de Neve?
Nas horas de aperto, as pessoas agarram-se às tábuas de salvação que aparecem pela frente. Vão bater à porta até dos que foram desdenhados ou maltratados. É que nas horas de aperto deve falar mais alto a entreajuda que é (dizem os optimistas) atributo da espécie humana. Daí que se entenda o governo. É reveladora, a pirueta de cento e oitenta graus. Os “capitalistas” com dinheiro depositado em off-shores já não são uma escumalha egoísta que mandou a pátria às malvas, cometendo a infâmia de fugir aos impostos.
Agora os capitalistas (já sem aspas) voltaram a ser gente recomendável. Sobre eles já não cai o opróbrio de nadarem na abundância material. Mas só se deixarem um quinhão da fortuna nos cofres públicos, depois de pagarem impostos. Com desconto. Diria, esta sedução dos aviltantes “capitalistas” (outra vez com aspas) é um aflito mecenato fiscal próprio dos sombrios dias de crise de que tardamos em sair. Coitado do governo. É o desespero a gritar a pulmões abertos.
Ocorre ao governo que os investidores suspeitem que este aliciamento cheira a esturro? Seduzem o repatriamento dos capitais, acenando com impostos reduzidos. Mas até quando? É legítimo desconfiarem que daqui a algum tempo – e não será muito – o fisco vai cair em força sobre estes ímpios capitais. É uma ratoeira em estado puro. O governo a passar sebo nos capitalistas, julgando que os vai hipnotizar com a causa maior – a causa da salvação nacional, ó desígnio tão vital. Logo que este dinheiro deixasse de estar exilado num paraíso fiscal, continuavam os afagos no dorso. No primeiro ano, por generosidade do fisco, pagavam impostos moderadamente. Uma vez que já estavam dentro da gaiola, nos anos seguintes terminava a complacência. Que ter muito dinheiro é crime e deve ser punido pelo fisco de forma exemplar.
Aposto que esta sedução terá tanto efeito como a de um lunático que seja repositório de fealdade a supor que vai conquistar uma jovem donzela a irradiar beleza. Rejubilo só de pensar que a encenação de sempre vai continuar montada: este dinheiro a evadir-se da mão de ferro do fisco e a aterrar em paraísos fiscais. É que a gaiola em que o governo o quer enjaular não pode ter trancas à porta. Nessa altura, virando-se para trás mal dobra a fronteira, com um largo sorriso nos lábios o maldito capital atira uma frase ao fisco danado: “apanha-me se puderes”.

19.3.10

Vasos comunicantes


In http://www.chinaodysseytours.com/yunnan/three-parallel-rivers-yunnan.html
Os rios correm paralelos. Separa-os um pedaço de terra verdejante. Muralha que impede que as águas se beijem. Vistas de cima, dir-se-ia que têm cores diferentes. Um dos braços do rio, tingido por um lamacento acastanhado. No outro parecem nidificar algas viçosas que emprestam uma tonalidade esverdeada.
Caminhas, entre as duas torrentes alimentadas pela água generosa das chuvas, à procura das pontas que desatem os braços de água paralelos. Não sabes, porque desconheces a geografia e não olhaste para a cartografia do lugar, se os dois braços se fundem lá adiante. Ou se seguem o seu caminho, desemparelhados, por destinos diferentes. Aquele terreno pastoso retarda a marcha. Avanças devagar, por vezes as pernas enterradas até ao joelho. Não és capaz de acompanhar o repentino caudal que desce enfurecido.
Às vezes deparas com charcos. Ora quase imperceptíveis, debaixo do musgo que se acantona no ilhéu; ora visíveis, difíceis de superar. Como teimaras que a tarde estava reservada ao conhecimento do bucólico lugar, não desistias de arremeter contra os atoleiros. Passara algum tempo e os dois canais persistiam em passear um ao lado do outro. Não conseguias discernir muito horizonte: o rio bravio despedaçava-se contra as curvas aveludadas de musgo. A cada esquina desfeita, outra curva mais adiante e os dois braços ainda emparelhados numa quase geométrica simetria.
Começaste a ficar intrigado com os fios de água que sulcavam a terra pastosa. Às primeiras travessias, não lhes deras atenção. Poderiam aqueles regatos – ora tímidos e rumorosos, ora de água estagnada em largas poças – ser vasos comunicantes que fixavam o parentesco entre os dois caudais?
De cada vez que te detinhas diante da água que interrompia o solo firme, demoravas na inspecção do lugar. Reviravas a terra que escondia o fio de água na sua extremidade. De uma vez, aventuraste um braço na profundidade do solo saturado. A curiosidade trouxera o impasse: os olhos já não conseguiam alcançar de onde vinha o fio de água que desmaiara até à quase imperceptibilidade. Ouvias o sussurro que ecoava da escuridão do casebre perfurado pelo braço. O regato perdia-se num salto no abismo, lá onde já não havia profundidade de braço que conseguisse levar.
Arfavas de cansaço quando a lucidez te extraiu à mistura de lodo negro e musgo revolvido. Erguido das cócoras em que estiveras demoradamente, os olhos quase tropeçaram na margem de um dos canais que corriam em portas paralelas. Sobre a tua direita, em baixo, a cova que a tua – quem sabe? – inútil curiosidade esquadrinhara. Eram só uns centímetros a separar a embocadura da cova do caudal que arrimava velozmente.
Extenuado e já impaciente – as curvas do rio sucediam-se numa perfeita simetria entre os seus braços – apressaste conclusões. Sancionarias, ali diante da cova experimental, que havia vasos comunicantes entre as duas torrentes. Ditarias a natureza acidental do pedaço de terra que separava os dois braços de água. Dois primos braços de água – deste por ti a concluir. A natureza acidental do longo ilhéu parecia não ter fim. Às escondidas, com a subtileza das pequenas coisas que se insinuam no venenoso silêncio, pedaços de água deslocavam-se de um lado para o outro. Servindo-se do terreno mole e húmido que alojava os escondidos vasos comunicantes entre os dois caudais. Que, talvez nem o soubessem – a não ser mais à frente, se os dois caudais se tornassem siameses –, eram primos.
Triunfante com a conclusão (que negavas ser precipitada), a profusão criativa fez-te engenheiro de pontes imaginativas. Aquele lugar era o postal ilustrado de tantas vidas. Que vivem tanto tempo no desconhecimento recíproco, sem darem conta que são tangíveis por vasos comunicantes que passeiam alheios ao conhecimento. Só faltava esta interrogação: chegaras às asserções através da indução. Mas não te deras ao trabalho de confirmar as pistas – e mais que pistas não eram – que punham à prova a indução triunfal.
Às vezes, os vasos comunicantes só são uma ilusão. Ou um puro acaso. Quando o são, não chegam a ser. Nem vasos, nem comunicantes.

18.3.10

Carta aberta a deus (sequela)


In: http://deusconhecido.blogspot.com
Deus (outra vez):
És tramado, ó deus. Insisto: se é que existes, que continuo resoluto na teimosia de que és uma invenção de gente que não acredita em si mesma e, temente da escuridão do agnosticismo, te inventou. E mais digo: és tramado, porque ou se deu uma notável coincidência, ou no mesmo dia em que te escrevi da outra vez (faz hoje duas semanas, duas longas semanas e já vais perceber porquê) fiquei coxo e ainda não consigo andar direito.
Ora isto faz-me mergulhar num raciocínio labiríntico. Tão labiríntico que, a certa altura, dou comigo perdido nas coordenadas – é como se já nem sequer existisse norte e sul, leste e oeste. Vamos lá ver se me percebes, que já nem eu consigo encontrar o fio à arrevesada meada. Os tementes do teu (como dizem?) omnisciente poder diriam, ao ler a anterior carta aberta que te era destinada, que fui ousado. De mais. Assuntos tão sérios não podem ser satirizados. Nem se trata deus de maneira tão familiar (o respeitinho, ah, o sagrado respeitinho). E menos se tolera que na grafia seleccionada o teu nome não venha abraçado à letra maiúscula. Já que dizem que és magnânimo, vamos concordar nisto: desconta a minha ousadia, a possível má educação de te tratar por tu e a recusa em te grafar com maiúscula. Vamos à parte sumarenta do assunto.
Que é, se me é permitido o egoísmo, o mal-estar permanente das últimas duas semanas. Vou perguntar sem rodeios: caiu-te mal a carta anterior? Consideraste-a um desafio, um inadmissível topete de um mortal fedelho? Terei passado das marcas? Imagino que, omnipresente, estás ao corrente das existências de todas as almas viventes, sem excepção. Das alegrias, que imediatamente te são creditadas. E das angústias e prantos, que são produto do acaso. Não dizem, os que te adoram, que és um bom pastor, zeloso com o rebanho que apascentas, sem lugar a distracções que explicam ovelhas tresmalhadas? Só que, nesse caso, a propalada bondade é uma falácia – ou só a praticas para os que em ti acreditam e têm um registo irrepreensível de pecados?
Digo-te com frontalidade: tenho a impressão que me estás a castigar pela audácia. E cá ando a coxear da perna esquerda, mercê da imensa e prolongada dor muscular que tem andado para aqui em bolandas, de músculo em músculo, ora um dorido e outro são, ora o seu contrário. Repara na minha insistência: continuo a manter que tu és uma ilusão, não existes. E antes que acuses de laborar numa tremenda incoerência (indagarias: “se não acreditas que eu existo, porque falas comigo?”), deixo-te a minha interrogação: se afinal existisses e fosses como te pintam, com essa infinita bondade que asperges do alto de uma invisível existência que adeja sobre todos os mortais, como explicas os instintos vingativos?
A menos que queiras fazer acreditar na tua inocência. Como é possível que sejas omnisciente, nesse caso? Podes tentar a hipótese das coincidências furtivas – aquelas coincidências tão improváveis, mas que acontecem uma vez num milhão. Agora sou eu que já nada entendo: continuas a negar a tua omnisciência, logo, a negar-te na tua profunda essência. Intuo que me queres dar razão. E que a tua existência é negada, pois estou a dialogar com uma figura virtual do que muitos acreditam ser a indistinta imagem divina. Ou és um holograma do que não existe?
Ando para aqui em círculos, a vegetar nestes pensamentos inúteis. A metafísica é um lugar árido. Ocupa um espaço inexistente. Em vez de lucubrar na esterilidade destes pensamentos, talvez aturdido pelo incómodo dos estúpidos músculos pernis avariados, devia ir ao que interessa: ao médico. Que sabe mais do que tu, deus sem estetoscópio e “meios auxiliares de diagnóstico”.

17.3.10

Racismo Barbie – ou “é o mercado, estúpido”


In http://www.fashion-doll-guide.com
Fiquei a saber que o politicamente correcto esteve quase a chegar ao mercado das bonecas para crianças, mas que estas, porventura por estarem ainda tenras para o complexo código politicamente correcto, se estiveram nas tintas. Lá dizia o poeta que o mundo é das crianças. O que julgamos ser infantilidade é, por vezes, o laço estreito que nos distancia (aos que já somos adultos e fazemos disso gala) entre a espontaneidade e as coisas forçadas.
A empresa que fabrica a famosa (e irritante) Barbie pôs à venda a equivalente de cor negra: Theresa, de sua graça. Jorge Marmelo sugere, em crónica no Público de ontem, que a empresa deve ter ido atrás do isco Obama. Assim como assim, agora que Santo Obama está no trono e é uma espécie de figura papal dos outrora desesperançados, e que Santo Obama é “afro-americano” (curioso eufemismo que a retórica bem pensante descobriu), a Barbie devia ter uma partenaire de tez escura. Os progenitores, ainda entusiasmados com esse assomo de esperança que veio dos eleitores dos Estados Unidos, desatariam a comprar a Barbie negra para educar as petizas nas delícias do anti-racismo.
E antes que alguém comece a tresler as minhas palavras, atalho caminho: não, não sou racista. Não o afirmo por ser temente aos postulados que contrariam os imperativos do código politicamente correcto, essa degenerescência (porque impõe um doentio pensamento único). Não sou racista porque não sou racista – e ponto final.
Ficamos a saber que as leis do mercado ditaram a desvalorização de Theresa. A – podemos-lhe chamar? – “Barbie original”, aperaltada num horrendo vestido cor-de-rosa, custa quase seis dólares. Theresa, coitada, está em preço de saldo: quem a quiser levar, arremata-a por três dólares. Vale quase metade da Barbie loura platinada. Os comerciantes explicam: há pouca gente a pegar na Barbie negra. Os hábitos, esse medonho enraizamento do conservadorismo, levam os progenitores e as infantas a preferirem a “Barbie original”.
Contra hábitos não há argumentos. No curto prazo – corrigiria, célere, um atento economista. E outro, acabado de se juntar à conversa, logo disparava o diagnóstico lapidar que os “economistas do sistema” costumam fazer, em tom jocoso: “é o mercado, estúpido” (os que são sovados de cima a baixo pelos economistas heterodoxos que, no blogue “Ladrões de Bicicletas”, escrevem certezas que se confundem com imperativos categóricos). Do outro lado da barricada, os economistas heterodoxos aproveitavam a deixa e jogavam com as palavras: “é o mercado estúpido”, assim, sem a diferenciadora vírgula. Ao mesmo tempo que acenavam com a cabeça em tom reprovador, confirmando que os Estados Unidos não se desprendem dos preconceitos raciais. Apesar de Santo Obama.
Que interessa se o mercado é estúpido ou presciente? Se, neste caso, o mercado é a interacção entre a empresa e os imensos consumidores (as petizas e os adultos que compram a prenda típica para as petizas), é sinal de que os Estados Unidos têm um racismo enraizado? Na resposta, dávamos o palco a economistas, sociólogos e psicólogos que tivessem ido para o terreno estudar comportamentos e hábitos de consumo. Das duas, uma: ou os “afro-americanos” não estão acostumados a comprar bonecas para a prole feminina (a malta do “Ladrões de Bicicletas”  permite a discriminação de género sem me chamar nomes feios?), o que explicava o enviesamento nas compras – apesar de Santo Obama; ou até os “afro-americanos” preferem comprar uma Barbie reluzentemente loura platinada.
Fosse qual fosse a resposta dos cientistas no terreno, alguém pode acusar o mercado de ser estúpido? Imagino os ideólogos da mão pesada das autoridades sobre o mercado a sonharem com decretos zelosamente redigidos tabelando o preço da Barbie loura e da Barbie negra. Apesar das últimas atulharem os armazéns das lojas e das outras saírem, expeditas, da caixa registadora. E, apesar de Santo Obama, alguém se cobriria desse ridículo?

16.3.10

Quanto tempo envelheceste?

Denota, o corpo, o espírito por vezes, a coreografia do tempo incessante. A espuma do mar requebra-se na vivacidade da areia molhada que é seu leito derradeira. Evoca no seu odor a intensa maresia das lembranças de uma juventude a que sentencias a sensação de algum desperdício. Talvez se acentue a angústia: olhas para trás, desfolhas o preenchido álbum das recordações que invadem o desarranjado amontoado da nostalgia, e um perfume de decadência esbarra-se no rosto. 
Dedicas uns minutos ao espelho, só para fixares as alterações fisionómicas. Não quer dizer que saibas – ou pelo menos te convenças – que não são as rugas, ou os cabelos cada vez mais grisalhos, ou as traições que o corpo vai aqui e ali deixando, as matrizes temporais da existência. Já estás cansado de ler e ouvir dizer que o que conta é a jovialidade interior, nem que essa insólita jovialidade esteja desafinada com o já algum envelhecimento do corpo.
Os esbirros da inocência, de uma retardada inocência que persiste em adiar o inadiável, persignam-se no ideal da eterna juventude. Como se fosse o truque, e dos bons, para trancar as portas à brisa anciã que os relógios não deixam desmentir. Mais doem as dores da idade que trepa na escala dos números quando em redor adejam estes esbirros da inocência. Deixá-los entregues às suas ilusões. Dispensava-se a pesporrência falsamente generosa: que guardem para si os truques de retardamento da idade.
As rugas não desdizem o corpo que se cansa mais depressa. Os cabelos esbranquiçados, que de começo surgiam esparsos e tímidos, vão tomando conta de áreas, dir-se-ia reservadas, da cabeça. E o corpo tem as suas avarias temporárias. Pela primeira vez, os olhos têm a lucidez do cenário montado pela amplitude dos anos que já são um sedimento respeitável. Temporã incursão na antecipação da ancianidade. Não mentem, os olhos e o espelho que fitam, nem as dores das temporárias avarias deste ou daquele pedaço do corpo.
Resoluto na negação do arquivo das memórias, por impenitente recusa em ceder o passo à nostalgia, persegues o firmamento que se compõe diante dos olhos. É para o envelhecimento que segue o caminho – e o tempo. Talvez a angústia se reduzisse a uns vestígios se soubesses (ou quisesses) entregar-te no adocicado regaço da nostalgia (achas). Nessa altura, sobravam outras dores implacáveis: o passado, grotesco garrote que afivela os dias correntes na lava do desperdício, o passado todavia irrepetível. Esse é o dilema maior. Dividido entre o devaneio nostálgico e o temor de sentir a perda de faculdades à medida que os anos vindouros se enquistam no calendário. É aí que maceras a profunda melancolia.
Tens a impressão que o tempo é uma escala subjectiva. Os minutos não correm ao mesmo tempo para toda a gente. Há anos duradouros, anos que se demoram numa exasperante languidez. Algumas pessoas passam pela desapiedada sentença do tempo como se o tempo tivesse pressa em deixá-las aprisionadas a uma prematura senescência. Outras, é como se tivessem descoberto um elixir que vai enxotando as nuvens do envelhecimento para latitudes que não frequentam.
As rugas, ora precoces, ora tardias, inelutável sinal do tempo que se desfolha a descompasso; as ruas por onde passam todas as pessoas e onde se configura a escala subjectiva do tempo; os espelhos que dilaceram os sinais da idade que se encaminha, como se fossem vinagre em carne viva; as fotografias que encerram a cicuta da melancolia; as pontas de ferrugem que atraiçoam o corpo. Envelhecias a cada dia que terminava. Só não sabias o quanto envelhecias.

O sobressalto maior era este: importava gastar tempo com as dores semeadas pelo tempo na sua marcha indomável? Era tão importante ser prisioneiro desta mortificação? Por momentos, suspeitavas que o segredo era destruir todos os relógios. Os implacáveis mentores do tempo.

15.3.10

A imensa capacidade católica para o perdão



In http://elizabethfdeoliveira.blogspot.com

Recorrente. Curas com taras mentais, traídos pelas hormonas. Talvez o problema seja o celibato teimosamente instituído. Uma espécie de castração, dizem voluntária, dos que se alistam na carreira do sacerdócio. Mas uma castração. É contra a natureza da espécie. Estará aqui a explicação para a história sombria da igreja católica com o sexo? E, entre os pecadilhos carnais dos presbíteros, a apetência para o abuso de crianças do mesmo sexo?
Que impere a honestidade intelectual: a pedofilia não se esgota nos homens a cobro de todas as suspeitas, nos homens que usavam sotaina e tinham autoridade moral para atribuir indulgências aos pecadores. Está por todo o lado. Para o que hoje interessa, apenas a pedofilia que traja de negro e se esconde nas sombras das sacristias, dos conventos e dos colégios onde os progenitores acreditavam em educação aprimorada.
É dos manuais: uma posição de autoridade escorrega em proveito próprio. A história da espécie, toda ela passada pelas contingências da fé, foi pastagem fértil para os abusos de autoridade dos guias espirituais. Nunca se haveria de questionar o senhor padre, imerso na aura inatingível de um guia espiritual. Os mais doentes sabiam da estultícia dos imberbes rapazes e da vergonha de que se cobriam se ousassem contar lá fora os jogos lúbricos com os seus “disciplinadores” (cobrir-se-iam de ridículo pois ninguém neles acreditaria). A coberto da vergonha e da ignorância – da mesma ignorância que vem de arrasto com a fé do povo tantas vezes confundida com crendice pagã – foram praticando o que menos se esperava deles. Nunca julgavam ser desmascarados.
E a hierarquia da igreja? Negava. Encobria os episódios que, a custo, chegavam ao conhecimento. O que importava era safar os padres pedófilos. Àqueles que teimavam em destapar a caixa de Pandora, a igreja oferecia um covarde pagamento em troco do silêncio. Era preferível a indemnização em notas ungidas pelo deus temporariamente cego do que a justiça dos homens. Os padres não se podiam sentar no banco dos réus. Essa era a justiça para a gente comum. Um padre é um embaixador de deus, não pode descer ao plano da gente comum.
Mas estes tempos modernos são diferentes. As gentes, mesmo as mais ignaras, já não são tementes – a deus e aos que propagam a sua palavra. Nestes tempos de hedonismo, a fé entrou em crise. Da igreja, queixam-se de caça às bruxas. Tradução: um fundamentalismo anti-clerical. Digo, tão condenável como as cegueiras religiosas. Não passa um mês sem que sejam desenterrados novos casos de abusos de rapazes por senhores padres e eminentes bispos, na maioria de um passado que já aconteceu há muito tempo.
Dir-se-ia que o corporativismo eclesiástico nos ensina um dos mais belos mandamentos das escrituras: a capacidade de perdoar. Neste caso, a hierarquia da igreja ensina-nos a perdoar os que algum dia foram, ou vierem a ser, nossos algozes. É o que o Vaticano se apressa a fazer quando encobre os intermináveis casos de pedofilia na penumbra das sacristias, dos conventos, dos reformatórios, dos colégios católicos. Aos traumas das vítimas? Dizem nada, talvez sejam irrelevantes. A bíblia está carregadinha de exemplos de virtuoso perdão. Cristo andou sempre a apanhar e a dar a outra face. Os que passaram – como dizê-lo? – pelas mãos e pelos desejos lascivos de senhores padres e eminentes bispos deviam estar gratos por serem criaturas de deus. E deviam, humildemente como ensinam os mandamentos, perdoar os seus verdugos.
Portanto, isto está tudo errado. Faz parte da monstruosa campanha para desacreditar a igreja, para afastar as pessoas da bondosa verdade de deus. É o Satanás à solta, personificado nos diabretes que não se cansam de morder nas canelas da santa igreja. Era isto que eles deviam aprender: perante a contrição dos que caíram em pecado, perdoar, perdoar, perdoar. E já estava! Para quê a justiça dos homens? Essa é feita de ressentimento e da atroz vingança. O perdão, ah o perdão, esse sentimento mais nobilitante.
E (muito) sobretudo, actuava uma esponja carregada de detergente anti-nódoas em todas estas polémicas. Em nome da santa, mas nada imaculada, igreja.

12.3.10

Corda bamba


©http://carlosrelva.wordpress.com
"É impossível pensar sem risco", José Gil na aula de jubilação em 10.03.10, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Nova de Lisboa.

O pensamento vacilante, traição ao próprio pensamento. Chega a nenhures quando cobiça prudência casuística. É escolástico: em vez da vertigem dos pensamentos frementes, dos pensamentos que se atropelam na sua fúria irracional, arremetem por um percurso metódico, longitudinal, varrendo todas as esquinas onde se despojam vestígios que não aproveitaram a coisa nenhuma. Pensamento metido dentro de uma camisa de sete varas, despido de ambição. Pensamento covarde. Uma contradição de termos: os dias claros são dias carregados de uma escuridão aterradora. 

Tomo os riscos como minhas dores. Acendo a bitola da audácia, nem que fique sob a mira das baionetas apontadas pelos outros, à mercê de um julgamento implacável se o pensamento que irrompe das tempestades cerebrais desaguar em tolice pegada. Prefiro essas dores do pensamento extemporâneo, desabrido, do pensamento consumindo-se na sua própria dilaceração. É espontâneo. Consciente dos riscos, nem sempre; esta é a maior embriaguez de que há conhecimento: nem sequer calcular os danos se por acaso o pensamento se encerrar na sua nulidade, ou se nele amarelecem golfadas de incoerência.

Os golpes de asa vieram sempre do pensamento arriscado. Rupturas com o tédio da constelação de vagos vultos cheios de nada. Pensar, arriscando, é arriscar através do pensamento. É dar vida ao pensamento. Convocar o imperturbável, por vezes o aparentemente ensandecido risco como intermediário do pensamento. Não, não há urgência em retardar os passos necessários do pensamento à espera que a poeira sedimente, à espera de amadurecimentos que tornem o pensamento irrepreensível. Vale pela aventura, o amplexo de emoções que se esbarram numa coreografia centrífuga, como se os membros do corpo se desconchavassem numa dança inverosímil em celebração do pensamento dir-se-ia demencial.

Não é acto de bravura inconsequente. Não é coragem heróica, passada a pente fino pela lupa da mais pura irracionalidade. Nem sequer exibicionismo frívolo, só para mostrar pensamento em dissidência dos cânones. É a sagração da espontaneidade no seu altar maior. Que interessa se a espontaneidade destrói os vestígios racionais que conduzem o corpo pelos caminhos amenos? Bons são os caminhos que o não são, tudo refulgindo na antítese do que é. Um caos absoluto, onde não há certezas, ou imperativos categóricos, ou verdades cheias de sobranceria. No fio da navalha, no limite da provocação com causas detrás.

É do pensamento arriscado que sobram os feitos que merecem ovação. Mas não é pela ovação, que o reconhecimento dos outros se emprenha na sua irrelevância. O impulso irreprimível está no desafio. Primeiro interno, depois desafio atirado para o exterior. Estacar diante de um castelo quase inacessível e trepar pelas paredes íngremes, cheias de musgo, a pulso. Demore o tempo que demorar, ou nem que a façanha seja insolitamente célere. Ao atingir o promontório da mais alta ameia, podem sobrar apenas miragens de uma paisagem que é uma ilusão que se propaga pelas águas de um oceano imaginado. Na cumeeira do castelo, até pode desmaiar a aragem triunfal, esboroar-se todo o pensamento que fora risco, dissolvido em invisível poeira. Ao menos houvera ousadia, vontade de desafiar as convenções, na necessária dança que confronta as convenções da doentia acalmia.

Pensar com o risco no fio do horizonte despedaça a rotina conservadora. A ousadia de arremeter contra os anafados que se instalaram bem por dentro das convenções e, como os eucaliptos, se reavivam consumindo todas as formas de vida em redor. É impossível pensar sem risco: os apertados corredores do pensamento exigem a coragem de algemar a fivela da ousadia à estratosfera, se preciso for.