Deus:
Começo por te expor uma angustiante contradição que desfaz esta carta de alto a baixo: eu não acredito que existas (e, portanto, não te ofendas se fugir da grafia maiúscula quando me referir a ti). Ora, se não acredito que existes, perguntarás – caso existas – porque motivo te escrevo uma carta. Um labirinto, para começar.
Vamos por partes, deus. Será por estilística que endosso esta missiva que, caso fosse pelo correio, não podia ter morada certa. Faria como naquelas queixas criminais contra incertos, quando há vandalização de propriedade não se sabe por quem e não queremos que o crime fique sem castigo. Acusamos "incertos", essa figura sem rosto e sem morada. Não leves a mal a comparação: não estou a sugerir que sejas um covarde meliante – não estou mesmo, se nem sequer acredito na tua existência. E, que só agora dou conta que entrei em força no tratamento por tu, admito que a tua imensa bondade me permitirá a liberalidade.
Deus: estava um dia destes distraído a olhar para uma reportagem sobre a tragédia na ilha da Madeira, quando se nos anunciaram um milagre divino. Uma aldeola perdida nas alcantiladas serranias da ilha foi devastada por uma enxurrada assassina. Levou tudo por diante. Casas, haveres, animais, algumas pessoas. Bem no epicentro da destruição (que decerto não teve o teu dedo), até uma capela foi tragada pela letal maré de lama e pedregulhos. Por isso é que aposto que este cataclismo natural não teve o teu dedo. Primeiro, tu és feitor da bondade – é o que ensina o catecismo a que os crentes se agarram com a força da fé inamovível. Tu não semeias destruição nem morte nem lágrimas de sofrimento entre gente modesta que ficou com um imenso nada no meio das mãos. E depois, como podias aceitar que um lugar de culto a ti mesmo fosse levado encosta abaixo, liquefeito entre os destroços que fizeram o seu ninho no leito da ribeira enfurecida?
Tu não estavas desatento! Moveste a divina influência para salvar a figura da santinha da devoção do modesto lugarejo. Como foi possível – indagava o incrédulo repórter enquanto entrevistava o teu embaixador no local, o jovem pároco de sotaina vestida – como foi possível que nada sobrasse da capela e, contudo, a santinha estivesse ali, diante dos olhos de todos, intacta? Não há leis da física que expliquem o feito. Nem os matemáticos, esses hereges que tudo racionalizam através da exactidão dos números, nos conseguiriam convencer que haveria uma qualquer probabilidade, por ínfima que fosse, da imagem da santa se salvar entre os despojos da satânica destruição.
Desculpa-me, deus, mas tenho um par de interrogações que não deixam de me apoquentar. Não dizem que tu controlas a natureza? Estava convencido que os que de ti são crentes estão convencidos que tu comandas todas as forças visíveis e invisíveis do universo. E, das duas uma: ou a natureza implacável escapa à tua alçada e, nesse caso, os crentes têm que redefinir dogmas; ou a natureza é a testa-de-ferro do Lúcifer, sobretudo quando a satânica personagem se insinua nas paredes interiores da natureza e a adultera, lançando-a, mortífera, contra as desprotegidas gentes. Ainda hoje me deito com esta dúvida: terás feito batota ao salvar a santinha da devoção do povo da demoníaca maré de lama e penedos? Receio que tenha exposto a tua pequenez perante a avassaladora enxurrada. Meteste o teu dedo no meio da capela, o teu – dizem – invisível dedo, e retiraste a imagem de uma santa do meio da água toldada que, irada, descia por ali abaixo. Pudeste nada contra a natureza em alvoroço. E vê lá o que foste salvar: uma imagem. Esclarece-me, que estou meio confuso: desde quando uma imagem vale mais do que uma vida? (E só digo uma, não as dezenas de vidas que já o não são, pois percebi a tua incapacidade.)
Caro deus: devias convencer o teu rebanho a afinar as antenas da análise. Eu sei, e tu sabe-lo melhor, que a fé se alimenta de ignorância. Considerar que a salvação da santinha foi um milagre é ver as coisas com uma miopia tremenda. Ó deus, se puderes (isto é, se existires), espalha uns vestígios de claridade no teu rebanho. Não sejas complacente. Não te acomodes no tranquilo sofá dos acríticos dogmas que cultivas entre o rebanho. Senão, temo que sejas deus de uma tíbia humanidade.
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