12.3.10

Corda bamba


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"É impossível pensar sem risco", José Gil na aula de jubilação em 10.03.10, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Nova de Lisboa.

O pensamento vacilante, traição ao próprio pensamento. Chega a nenhures quando cobiça prudência casuística. É escolástico: em vez da vertigem dos pensamentos frementes, dos pensamentos que se atropelam na sua fúria irracional, arremetem por um percurso metódico, longitudinal, varrendo todas as esquinas onde se despojam vestígios que não aproveitaram a coisa nenhuma. Pensamento metido dentro de uma camisa de sete varas, despido de ambição. Pensamento covarde. Uma contradição de termos: os dias claros são dias carregados de uma escuridão aterradora. 

Tomo os riscos como minhas dores. Acendo a bitola da audácia, nem que fique sob a mira das baionetas apontadas pelos outros, à mercê de um julgamento implacável se o pensamento que irrompe das tempestades cerebrais desaguar em tolice pegada. Prefiro essas dores do pensamento extemporâneo, desabrido, do pensamento consumindo-se na sua própria dilaceração. É espontâneo. Consciente dos riscos, nem sempre; esta é a maior embriaguez de que há conhecimento: nem sequer calcular os danos se por acaso o pensamento se encerrar na sua nulidade, ou se nele amarelecem golfadas de incoerência.

Os golpes de asa vieram sempre do pensamento arriscado. Rupturas com o tédio da constelação de vagos vultos cheios de nada. Pensar, arriscando, é arriscar através do pensamento. É dar vida ao pensamento. Convocar o imperturbável, por vezes o aparentemente ensandecido risco como intermediário do pensamento. Não, não há urgência em retardar os passos necessários do pensamento à espera que a poeira sedimente, à espera de amadurecimentos que tornem o pensamento irrepreensível. Vale pela aventura, o amplexo de emoções que se esbarram numa coreografia centrífuga, como se os membros do corpo se desconchavassem numa dança inverosímil em celebração do pensamento dir-se-ia demencial.

Não é acto de bravura inconsequente. Não é coragem heróica, passada a pente fino pela lupa da mais pura irracionalidade. Nem sequer exibicionismo frívolo, só para mostrar pensamento em dissidência dos cânones. É a sagração da espontaneidade no seu altar maior. Que interessa se a espontaneidade destrói os vestígios racionais que conduzem o corpo pelos caminhos amenos? Bons são os caminhos que o não são, tudo refulgindo na antítese do que é. Um caos absoluto, onde não há certezas, ou imperativos categóricos, ou verdades cheias de sobranceria. No fio da navalha, no limite da provocação com causas detrás.

É do pensamento arriscado que sobram os feitos que merecem ovação. Mas não é pela ovação, que o reconhecimento dos outros se emprenha na sua irrelevância. O impulso irreprimível está no desafio. Primeiro interno, depois desafio atirado para o exterior. Estacar diante de um castelo quase inacessível e trepar pelas paredes íngremes, cheias de musgo, a pulso. Demore o tempo que demorar, ou nem que a façanha seja insolitamente célere. Ao atingir o promontório da mais alta ameia, podem sobrar apenas miragens de uma paisagem que é uma ilusão que se propaga pelas águas de um oceano imaginado. Na cumeeira do castelo, até pode desmaiar a aragem triunfal, esboroar-se todo o pensamento que fora risco, dissolvido em invisível poeira. Ao menos houvera ousadia, vontade de desafiar as convenções, na necessária dança que confronta as convenções da doentia acalmia.

Pensar com o risco no fio do horizonte despedaça a rotina conservadora. A ousadia de arremeter contra os anafados que se instalaram bem por dentro das convenções e, como os eucaliptos, se reavivam consumindo todas as formas de vida em redor. É impossível pensar sem risco: os apertados corredores do pensamento exigem a coragem de algemar a fivela da ousadia à estratosfera, se preciso for.

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