5.3.10

O que uns olhos vêem


As teclas do piano, sons sedosos que ecoam ao longe. Parecem um sussurro, a entronização de um sonho. Os olhos procuravam em redor um lugar onde o piano pudesse habitar. Só havia paisagem em estado bruto. Arvoredo em espaçada coreografia, com o vento a esbarrar, em cadência incerta, na folhagem primaveril. Ao fundo do vale insinuava-se o rumorejo do ribeiro ainda caudaloso (as neves tardias haviam entrado em degelo). Mais ao longe, as cumeadas descarnadas eram lugar ainda mais improvável. De onde chegava a melopeia encantadora?

Tudo se estranhava naqueles instantes. Os sentidos estavam em sobressalto, desordenados. Os ouvidos captavam os acordes trinados pelas adelgaçadas teclas do piano. Mas os olhos enfureciam-se diante do deserto que era o lugar em que o piano se alojara. A certa altura, parecia que andava em hemisférios separados. A audição a norte, de onde soavam estrofes musicais. Mas a norte nada evocava a lembrança de um piano. Por via das dúvidas – não fosse o vento ditar a confusão dos pontos cardeais – os olhos começaram a gastar-se por todos os recantos da rosa-dos-ventos. Esquadrinhavam o horizonte, os pés moviam-se para diante, à direita e depois à esquerda, recuavam noutra direcção. O piano tomava conta do lugar ocupado pelos sons, mas os olhos continuavam aturdidos pela ausência do seu lugar.

Podia ser miragem auditiva. Os olhos não se deixam atraiçoar por nenhum outro sentido. Convencido que os olhos são imperadores dos sentidos, interpelou os ouvidos. Só podia ser uma simulação, uma redonda ilusão auditiva. Inconscientemente, os olhos teimavam em podar cada centímetro da paisagem até ao fio do horizonte. Meteu os pés ao caminho de uma cumeeira sobranceira. Nem o xisto negro pisado ao trepar o monte agasalhava o som do piano enfeitiçado. Estacou a marcha quando o caminho deixou de empinar. Aos seus pés, os vales e os montes ainda mais altos exibidos diante do varandim onde o corpo se fizera inerte. A pujante, amena melodia eclipsava todos os outros sons. E nem sequer a respiração ofegante conseguia ouvir no púlpito da subida intrépida.

Os olhos bem abertos dissecavam cada milímetro da paisagem que se desfraldava do alto da cumeada. Teimosamente, os olhos consumiam-se na deletéria paisagem. A certa altura, já porventura longos minutos gastos (e talvez horas?) na senda dos fragmentos que se desprendiam do piano invisível, a paisagem perdera o bucolismo. Os olhos, traídos pelo que julgara ser uma distracção auditiva. E os ouvidos inocentemente atraídos pelo engodo.

Mas se o piano, insistente, tocava uma melodia interminável, podiam estar os olhos ofuscados por outra miragem qualquer? Desconfiou que as prioridades entre os sentidos estavam certas. Interrogou os olhos. O que estariam a ocultar, ou o que estariam a ser incapazes de observar? Nisto, as notas escritas na partitura algures começaram a encavalitar-se. De repente, as notas atropelavam-se umas às outras, tornando a composição do pianista sem rosto ininteligível, disforme. Como se os dedos do pianista macerassem nas teclas brancas e pretas do piano. Por dentro do piano ausente, um qualquer ácido corroía a harmonia melómana. O céu escurecera, a tempestade antecipada a escrever as suas próprias notas no horizonte de onde o vento cavalgava uma ira proclamadora. Por fim, não era só o som do piano que ecoava em redor.

O céu plúmbeo obnubilava a métrica aveludada do piano sabiamente tocado. Os olhos, enfim, triunfavam sobre a ilusão da audição de algo que não tinha lugar algum para ser ecoado. Enfim, a bonança da vista sobrepunha-se à miragem dos sons que desatara uma angustiante perturbação. Ordem, a sacrossanta ordem, reposta. E a bonança revista pelos dedos untuosos da tempestade a bater à porta do céu em redor.

Não sabia, no meio deste imenso nada confuso, se a patologia não seria terapêutica e a cura se convertera em irremediável doença. Mercê de uns olhos que atraiçoam.

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