9.3.10

Até as ilusões são ilusões (ou: epílogo de uma terra risível)


Uma sondagem no Público: 60% acreditam que o senhor primeiro-ministro mente com todos os dentes. Mas 40% renovam a confiança num mentiroso, pois é neste PS que estão dispostos a votar se houver eleições. Não me digam que é pelo deserto de alternativas que despenteiam a oposição. Tenho cá para mim que isto é imagem do que somos: a mentira não é aleivosia que envergonhe.

Vou fazer de conta que ainda sou ingénuo. Ao passar os olhos por aquela sondagem, acto contínuo, deixava de ser ingénuo. Diria, assombrado pelos números, que este foi o ponto de viragem. É uma terra que já só faz rir. Não vale a pena a depressão geral, se não há lugar à depressão geral quando os motivos que levariam a uma depressão geral não são motivos. Pelo menos para uma depressão geral. São motivos, isso sim, para que o parceiro do lado trepe um pouco mais por cima do vizinho, que por sua vez já tinha trepado às costas do parceiro ao lado, o mesmo que…

A sério: façamos disto um imenso programa de humor, um permanente programa de humor. Só resta rir, a pulmões cheios, com as desgraças. Pois as desgraças sofrem uma dupla mutação. Primeiro, deixam de ser episódios apoquentados com o temível efeito da cebola cortada. Choramos com desgraças, mas rimos com as graças que enfeitam a paisagem. E chegamos lá – às graças – por uma metamorfose semântica. Cai o "des" e ficam apenas as graças. Pois se 60% estão convencidos que o senhor primeiro-ministro mente e, para muitos, ele merece continuar no cargo, é sinal de que mentir é engraçado.

Quando ouvi numa mesa do café dois matarruanos a elogiarem o senhor primeiro-ministro, na altura embaraçado pela história mal contada da licenciatura certificada a um domingo, calibrei a bússola do entendimento. Esta é a terra em que uma multidão aplaude os arranjinhos dos chicos-espertos, pois a multidão está na fila de espera ansiosa por vencer o campeonato do chico-espertismo.

Imagino, pois, os jovens em trabalho de campo para a empresa de sondagens – e imagino-os ainda imberbes, embebidos num idealismo que a dura face da realidade não demora a derrotar. Exultantes com tanta gente a garantir, com convicção inabalável, que o senhor primeiro-ministro é mitómano. Coitados, os jovens idealistas logo a seguir perplexos e confusos, quando uma quase maioria admite que deseja ser governada por alguém que haviam rotulado de mentiroso. E os dias a seguir, passados na angústia de terem sido testemunhas em primeiro grau de um terramoto no idealismo que, então, passou a ter foros de ingenuidade.

Esta sondagem é terreno fértil para a análise de sociólogos, psicólogos e, talvez, psiquiatras. E muita matéria-prima, e de excelente qualidade, para humoristas. Não sei se exagero ao formular a interrogação desta forma: uma terra que condescende com um mentiroso (que não é um mentiroso qualquer: é o primeiro-ministro), é uma terra de mentirosos compulsivos? Juro que já não tinha ilusões há largos anos. A medida do tempo decapita as ilusões. Tornamo-nos imunes às ilusões. Os escândalos só servem para esboçar uma gargalhada e alimentar a boa disposição. O dia chegará em que tudo, mas tudo, vai bulir pela raiz. A risada maior será quando o caos tiver tomado conta de tudo. Há cientistas que asseguram: por vezes, a espessura do lamaçal entranha-se de tal forma até à medula, que só o caos que se segue à devastação de tudo alumia uma ténue luz por entre a poeira que se mantém em suspensão.

Ao que me é dado a concluir que acho bem (e óbvio) que o PS e o senhor que ainda é o chefe de facção continuem a liderar as intenções de voto, mesmo que uma maioria o chame mentiroso. Os mentirosos (e agora refiro-me aos que aplacam a mentira e a aceitam como padrão – até de governação) gostam tanto de mentir como que lhes mintam. E perdoem-me a insubordinação do adágio popular: para mentiroso, mentiroso e meio.

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