16.3.10

Quanto tempo envelheceste?

Denota, o corpo, o espírito por vezes, a coreografia do tempo incessante. A espuma do mar requebra-se na vivacidade da areia molhada que é seu leito derradeira. Evoca no seu odor a intensa maresia das lembranças de uma juventude a que sentencias a sensação de algum desperdício. Talvez se acentue a angústia: olhas para trás, desfolhas o preenchido álbum das recordações que invadem o desarranjado amontoado da nostalgia, e um perfume de decadência esbarra-se no rosto. 
Dedicas uns minutos ao espelho, só para fixares as alterações fisionómicas. Não quer dizer que saibas – ou pelo menos te convenças – que não são as rugas, ou os cabelos cada vez mais grisalhos, ou as traições que o corpo vai aqui e ali deixando, as matrizes temporais da existência. Já estás cansado de ler e ouvir dizer que o que conta é a jovialidade interior, nem que essa insólita jovialidade esteja desafinada com o já algum envelhecimento do corpo.
Os esbirros da inocência, de uma retardada inocência que persiste em adiar o inadiável, persignam-se no ideal da eterna juventude. Como se fosse o truque, e dos bons, para trancar as portas à brisa anciã que os relógios não deixam desmentir. Mais doem as dores da idade que trepa na escala dos números quando em redor adejam estes esbirros da inocência. Deixá-los entregues às suas ilusões. Dispensava-se a pesporrência falsamente generosa: que guardem para si os truques de retardamento da idade.
As rugas não desdizem o corpo que se cansa mais depressa. Os cabelos esbranquiçados, que de começo surgiam esparsos e tímidos, vão tomando conta de áreas, dir-se-ia reservadas, da cabeça. E o corpo tem as suas avarias temporárias. Pela primeira vez, os olhos têm a lucidez do cenário montado pela amplitude dos anos que já são um sedimento respeitável. Temporã incursão na antecipação da ancianidade. Não mentem, os olhos e o espelho que fitam, nem as dores das temporárias avarias deste ou daquele pedaço do corpo.
Resoluto na negação do arquivo das memórias, por impenitente recusa em ceder o passo à nostalgia, persegues o firmamento que se compõe diante dos olhos. É para o envelhecimento que segue o caminho – e o tempo. Talvez a angústia se reduzisse a uns vestígios se soubesses (ou quisesses) entregar-te no adocicado regaço da nostalgia (achas). Nessa altura, sobravam outras dores implacáveis: o passado, grotesco garrote que afivela os dias correntes na lava do desperdício, o passado todavia irrepetível. Esse é o dilema maior. Dividido entre o devaneio nostálgico e o temor de sentir a perda de faculdades à medida que os anos vindouros se enquistam no calendário. É aí que maceras a profunda melancolia.
Tens a impressão que o tempo é uma escala subjectiva. Os minutos não correm ao mesmo tempo para toda a gente. Há anos duradouros, anos que se demoram numa exasperante languidez. Algumas pessoas passam pela desapiedada sentença do tempo como se o tempo tivesse pressa em deixá-las aprisionadas a uma prematura senescência. Outras, é como se tivessem descoberto um elixir que vai enxotando as nuvens do envelhecimento para latitudes que não frequentam.
As rugas, ora precoces, ora tardias, inelutável sinal do tempo que se desfolha a descompasso; as ruas por onde passam todas as pessoas e onde se configura a escala subjectiva do tempo; os espelhos que dilaceram os sinais da idade que se encaminha, como se fossem vinagre em carne viva; as fotografias que encerram a cicuta da melancolia; as pontas de ferrugem que atraiçoam o corpo. Envelhecias a cada dia que terminava. Só não sabias o quanto envelhecias.

O sobressalto maior era este: importava gastar tempo com as dores semeadas pelo tempo na sua marcha indomável? Era tão importante ser prisioneiro desta mortificação? Por momentos, suspeitavas que o segredo era destruir todos os relógios. Os implacáveis mentores do tempo.

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