18.3.10

Carta aberta a deus (sequela)


In: http://deusconhecido.blogspot.com
Deus (outra vez):
És tramado, ó deus. Insisto: se é que existes, que continuo resoluto na teimosia de que és uma invenção de gente que não acredita em si mesma e, temente da escuridão do agnosticismo, te inventou. E mais digo: és tramado, porque ou se deu uma notável coincidência, ou no mesmo dia em que te escrevi da outra vez (faz hoje duas semanas, duas longas semanas e já vais perceber porquê) fiquei coxo e ainda não consigo andar direito.
Ora isto faz-me mergulhar num raciocínio labiríntico. Tão labiríntico que, a certa altura, dou comigo perdido nas coordenadas – é como se já nem sequer existisse norte e sul, leste e oeste. Vamos lá ver se me percebes, que já nem eu consigo encontrar o fio à arrevesada meada. Os tementes do teu (como dizem?) omnisciente poder diriam, ao ler a anterior carta aberta que te era destinada, que fui ousado. De mais. Assuntos tão sérios não podem ser satirizados. Nem se trata deus de maneira tão familiar (o respeitinho, ah, o sagrado respeitinho). E menos se tolera que na grafia seleccionada o teu nome não venha abraçado à letra maiúscula. Já que dizem que és magnânimo, vamos concordar nisto: desconta a minha ousadia, a possível má educação de te tratar por tu e a recusa em te grafar com maiúscula. Vamos à parte sumarenta do assunto.
Que é, se me é permitido o egoísmo, o mal-estar permanente das últimas duas semanas. Vou perguntar sem rodeios: caiu-te mal a carta anterior? Consideraste-a um desafio, um inadmissível topete de um mortal fedelho? Terei passado das marcas? Imagino que, omnipresente, estás ao corrente das existências de todas as almas viventes, sem excepção. Das alegrias, que imediatamente te são creditadas. E das angústias e prantos, que são produto do acaso. Não dizem, os que te adoram, que és um bom pastor, zeloso com o rebanho que apascentas, sem lugar a distracções que explicam ovelhas tresmalhadas? Só que, nesse caso, a propalada bondade é uma falácia – ou só a praticas para os que em ti acreditam e têm um registo irrepreensível de pecados?
Digo-te com frontalidade: tenho a impressão que me estás a castigar pela audácia. E cá ando a coxear da perna esquerda, mercê da imensa e prolongada dor muscular que tem andado para aqui em bolandas, de músculo em músculo, ora um dorido e outro são, ora o seu contrário. Repara na minha insistência: continuo a manter que tu és uma ilusão, não existes. E antes que acuses de laborar numa tremenda incoerência (indagarias: “se não acreditas que eu existo, porque falas comigo?”), deixo-te a minha interrogação: se afinal existisses e fosses como te pintam, com essa infinita bondade que asperges do alto de uma invisível existência que adeja sobre todos os mortais, como explicas os instintos vingativos?
A menos que queiras fazer acreditar na tua inocência. Como é possível que sejas omnisciente, nesse caso? Podes tentar a hipótese das coincidências furtivas – aquelas coincidências tão improváveis, mas que acontecem uma vez num milhão. Agora sou eu que já nada entendo: continuas a negar a tua omnisciência, logo, a negar-te na tua profunda essência. Intuo que me queres dar razão. E que a tua existência é negada, pois estou a dialogar com uma figura virtual do que muitos acreditam ser a indistinta imagem divina. Ou és um holograma do que não existe?
Ando para aqui em círculos, a vegetar nestes pensamentos inúteis. A metafísica é um lugar árido. Ocupa um espaço inexistente. Em vez de lucubrar na esterilidade destes pensamentos, talvez aturdido pelo incómodo dos estúpidos músculos pernis avariados, devia ir ao que interessa: ao médico. Que sabe mais do que tu, deus sem estetoscópio e “meios auxiliares de diagnóstico”.

6 comentários:

Anónimo disse...

Meu filho,

Como vês, estou de facto em todo lado. Até em ti.
Não te castigues. Aceita-te.

Este teu deus

P.S. - Vai ao médico. Os teus músculos que tanto castigas, não são do meu pelouro.

PVM disse...

Resposta ao P.S., deus: então não és omnisciente. Portanto, não és.

Anónimo disse...

Meu filho,

Sim, sou omnisciente, sabes bem disso. Por isso me escreves através do teu blog, porque acreditas que o leio.
Mas tenho mais que fazer que andar a dar consultas. Além disso, a vossa economia tem de funcionar (os médicos, farmaceuticas, etc.).
Só vos criei... depois há o livre arbítrio.

deus

PVM disse...

deus: és uma contradição de termos. Uma não existência.

Milu disse...

Este texto fez-me lembrar a minha infância, de quando a minha família seguia pelas ruas com o meu irmão mais velho a fazer de aleijão. Metia um pé para dentro, torcia a perna, e lá seguia à nossa frente provocando o olhar de dó e comiseração das pessoas com quem cruzávamos. Eu e o meu irmão mais novo fartávamos-nos de rir à socapa, porém a minha mãe ficava incomodadíssima e advertia o filho de que Deus Nosso Senhor o poderia castigar. Na sua ideia, o que o meu irmão fazia era um pecado, porque era como se se estivesse a divertir com a infelicidade de muitos seres humanos que sofrem de deficiência motora, mas, no fundo, o que nos divertia a sério eram as caras condoídas e pesarosas das pessoas que observavam o andar aleijão daquela criança. Certo é, que em muitas ocasiões da minha vida, dei por mim a sofrer da influência da minha mãe, que considero nefasta, não tenho pejo em apregoá-lo aos quatro ventos, pois para a minha mãe, Deus estava sempre a castigar-nos, até pelas coisas mais insignificantes, como por exemplo uma brincadeira de crianças. Tive de crescer e levar muito coice até finalmente me livrar dos grilhões que foram todas as catequeses, missas e comunhões que tive de gramar à força naqueles meus tempos da mais pura inocência. Afinal, se formos por esta lógica de castigos divinos não tem Deus mais nada que fazer, pois não falta quem precise de correctivos. Há por aí quem tanto mal faz ao seu semelhante e ainda assim a vida corre-lhe sobre rodas.

Anónimo disse...

Tem gente pensando que tudo de ruim que acontece com uma pessoa é Deus castigando.Outras nunca foram a uma igreja, nunca leram a biblia, nunca fizeram uma oração e acham que Deus é mal por não cuidar delas, se Deus não esta na sua vida (porque vc não quer)ele não tem nada a ver com o que lhe acontece, independentemente de ser uma coisa ´boa` ou ruim. Mas lembre-se, sem Deus nada tem valor. E não deixe que as outras pessoas coloquem ideias erradas na sua cabeça, procure a sabedoria e conheça Deus por si mesmo.