10.6.10

A menina sabe escrever o nome?


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As Sónias, as Sílvias, as Patrícias, as Cláudias entregam os exames onde acabaram de debitar a sabedoria empinada. Olho de raspão para o cabeçalho, onde as meninas se identificam manuscrevendo o nome. São mais as Sónias que se auto-manuscrevem “Sonias” do que as meninas baptizadas com este nome que não se esquecem do acento no o. E as Cláudias que se esquecem se acentuar a terceira letra do nome. E as Sílvias e as Patrícias que não consideram relevante que o primeiro i tenha que levar acento.
Pegou de estaca o modismo da dissolução dos acentos nas palavras que os levam. Os acentos serão apenas um incómodo que muito perturba os jovens da nossa praça, porventura mais preocupados em reinventar a língua à medida que escrevem mensagens de telemóvel a uma velocidade supersónica. Os acentos são um ornamento descartável. Como os piscas nos automóveis.
Ponho-me a adivinhar que não será o facilitismo enraizado, com o lacre das autoridades competentes da pedagogia escolar, que manda os acentos para o esquecimento. É pragmatismo. Para quê perder tempo a acentuar palavras? Toda a gente chega ao significado pelo contexto. As palavras não aparecem isoladas. Estão emparelhadas com outras. É nessa sinfonia que ganham o seu sentido. Devíamos aprender com os ingleses, que não conhecem acentos na sua língua. Os vetustos linguistas deviam modernizar a língua. Até o acordo ortográfico é pouco ousado. As regras gramaticais e ortográficas deviam ser revistas de cima a baixo. Depuradas de toda a complexidade. Quem, a não ser um punhado de professores da língua nativa e os linguistas, sabe as regras de gramática de uma ponta à outra?
Para agravar o diagnóstico, a tecnologia é poderosa adversária da pureza linguista. Uma adversária acidental, note-se. Os processadores de texto trazem funcionalidades automáticas que corrigem as palavras à medida que as vamos escrevendo no teclado do computador. Um dia destes, atendia uma aluna com dúvidas para um exame que estava próximo. Ela pôs uns papéis em cima da secretária – os papéis onde tinha anotado as perguntas que queria aclarar. Os olhos escorregaram para o sítio onde estava escrito “mantem”. Antes de ela abrir a boca, pus o dedo em cima daquela palavra e perguntei-lhe o que estava errado. Hesitou. Estava convencida que “mantém” não levava acento no e. “O que é feito do acento?” –  perguntei. “Ah, é para isso que existe o corrector no computador” – retorquiu.
É factual: os computadores são uma esquizofrénica conquista da modernidade. São uma ajuda inestimável. E uma prisão, ao mesmo tempo. Eu cá não consigo ir a lado nenhum sem me fazer acompanhar do portátil. Com isso, as canetas ganharam muita esperança de vida. Dantes escrevíamos através da tinta libertada pelas esferográficas. Agora amontoam-se no receptáculo a elas destinado ali num canto da secretária. O tempo passa e elas não envelhecem, não perdem propriedades. Vai mal o negócio dos fabricantes de canetas. A culpa é de estarmos empenhados às maravilhas dos computadores. Falo por mim: nas raras tarefas que exigem que a mão agasalhe uma caneta, ao fim de um par de minutos fico com a mão cansada. Se a tarefa se demora, o dedo médio ganha um calo avermelhado nas proximidades da unha.
A culpa da ausência de acentos, quando os mais novos têm que escrever através de uma caneta, é das facilidades semeadas pela tecnologia. Deseducam-nos, estas facilidades. Ao ponto de naquela gente cujo nome se compõe com um amontoado de letras que exige um acento lá pelo meio, essa gente nem o próprio nome sabe escrever. Seria caso para interrogar (mas só se isto tivesse importância): quando esta gente nem o próprio nome honra, o que sobra?

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