17.6.10

Três vodkas e um jaquinzinho


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O sol azedara? O relógio na parede da sala já tinha anunciado doze ou treze badaladas – perdera-se a meio da contagem, enquanto o som estridente derramava um tinir perfurante no mais profundo do cérebro. Noite de farra. Enquanto os neurónios se ligavam à corrente, debatendo-se nos lençóis despenteados, acertava as contas com a memória. Ou o que sobrava dela depois da noite ébria.
Levantou-se. Ainda cambaleante. Foi pedir ajuda ao telemóvel, ao registo das chamadas. À espera que se fizesse luz entre a cortina de penumbras que ciciava dentro da cabeça, como se fosse uma broca proficiente. Era nestas alturas que repetia juras. As que, assertivas, prometiam uma nova vida – não monástica (era pedir muito), mas uma vida, dizem os cânones, “regrada”. O corpo gritava as dores dos excessos. As incógnitas persistiam. A consulta ao telemóvel falara nada.
Espreitou, a medo, entre as persianas diligentemente semicerradas. O sol haveria de ajudar à perfurante tarefa das brocas massacrantes do cérebro. Foi a medo, entreabrindo meticulosamente uma tira da persiana mais próxima do topo da janela. Sossegou-se, pois o sol encomendara-se para outro dia. Diriam os habituais críticos: aquelas eram horas impróprias para uma alvorada.
Foi quando começou a despertar do torpor, a arrepender-se do arrependimento que anotara a vida moderada na agenda das improbabilidades. Contrariou a lógica do tempo mandado. As alvoradas não têm lugar cativo nos ponteiros dos relógios. Que se danem os olhares transviados das velhinhas reformadas que dão conta do estado lastimável (e das más horas) a que põe o pé em casa. Que se danem aqueles olhares censórios, mas ao mesmo tempo silenciosamente invejosos, dos velhinhos reformados que o olham com desprezo na madrugada fria quando regressa para o sono tardio, mal se tendo em pé.
Alguma imundície cobria o corpo. A vontade para se meter dentro de um banho, essa era pouca. Estava tomado por sentimentos contraditórios. A espaçosa experiência de bebedeiras descomunais ensinara-lhe o efeito balsâmico do duche. Mais a mais, a ressaca anestesiava os sentidos. Punha-se debaixo do chuveiro de água gelada sem temores, a pele não esboçava arrepio algum. Logo ele, que fugia a sete pés do sempre gélido oceano das nortadas. O lado preguiçoso teimosamente instalado não convidada ao banho. Ao cabo de palmilhar os cantos da casa – e nisto passou uns três quartos de hora – entregou o corpo à coragem e derrotou a mandriice. Estava pronto para sair de casa.
A fome arranhava o estômago. Àquela hora, os restaurantes já em balanço do almoço. Alguns empregados de mesa que já o conheciam disparavam, com insuportável ironia e desdém, “isto já não são horas de almoçar” e “acordasses mais cedo”. Ao voltar costas, sentia o burburinho da converseta cangalheira. Só podia ser inveja. Os garçons, todos entesados, embebidos na sua vidinha rasteira, destilavam a indisfarçável ira por não ser sua a vida boémia.
Aportou na habitual tasca onde a solidariedade de armas é conforto. Ali a bebida corria desde o nascer do sol à noite a fazer-se meia idade. Primeiro vodka para acamar a comida que aí viesse. (Hoje apetecia-lhe vodka, para cortar o cocktail explosivo que – disso lembra-se – fora apascentando durante a longa noite da véspera). “O que ainda há para comer?” – atirou, acentuando aquele “ainda”, arrastando a segunda sílaba para que se percebesse que havia fome para liquidar no corpo ainda transido por uma noite a destempo. “Só tenho um jaquinzinho e uns restos de arroz de pimentos. Serve?” Uma pausa de hesitação. “Então venha lá isso. E dois vodkas para acompanhar”.
A noite prometia-se, outra vez, irmã da alvorada soalheira. Fazia lá sentido deixar o corpo transido cair no torpor que desencorajasse outra boémia.

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