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Isto tem que ser feito com muito cuidado. E com o respeitinho que os monstros sagrados exigem. Não pode qualquer filisteu sem credenciação intelectual abjurar as verdades sentenciadas pelo Dr. Soares. A menos que queira arrostar o rótulo de herege. Aí vai um esforço danado para fazer as interrogações com jeitinho, para não doerem a sua excelência, o mais alto senador da pátria.
Não é que ontem os olhos escorregaram para o semanal artigo de opinião que o Dr. Soares publica no Diário de Notícias? Eu já devia ter idade e tarimba para passar à página seguinte quando a douta opinião do Dr. Soares espreita nos jornais. Se o tinha aprendido a fazer, por que mistério insondável me deixei atraiçoar ontem e li, de uma ponta à outra – e duas vezes! – a catedrática opinião de que ninguém pode ter a ousadia de discrepar. Agora já não tem remédio. Resta a vilania de algumas, por assim dizer, interpelações desconfortáveis.
Comecei por gostar da prosa. As primeiras linhas eram devastadoras para o amador primeiro-ministro que ainda se aguenta em pé. Comecei a desconfiar – como os pobres diante de uma esmola faraónica. Poucas linhas depois, o leitor entende que o primeiro-ministro, coitado, foi apanhado numa tempestade montada pelos demoníacos mercados, com a soberba dos grandes capitalistas (daqueles que o são mais do que o nosso auto-patriarca, bem entendido). O senador condescende: o mal atinge todos os países. Todos os governos estão com o credo na boca pela impotência em domarem esta tremenda crise.
É a vez de aterrarem as verdades insofismáveis – as que são lavradas pelo punho de sua excelência, que até é doutor honoris causa sabe-se lá por quantas universidades. Começa por advertir que os “(...) especuladores (...) pretendem destruir o euro e, a partir daí, desintegrar a própria União Europeia (...)”. Julgamento sumário, sem direito a contraditório. Com a retumbância própria dos “argumentos de autoridade”. Se o Dr. Soares nos garante que os maléficos especuladores (esses parasitas da economia) querem atacar o euro e destruir a União Europeia, não pensemos – não – que isso não passa de uma fantasia geriátrica. Se o Dr. Soares diz, é porque é.
Só que aprendi – defeito profissional – que não podemos lançar “verdades” sem as justificarmos. A menos que sejam apenas atoardas. Quando escrevemos “isto é assim”, à direita da vírgula deve aparecer “porque”. Para que percebêssemos que as suas verdades não carecem de confirmação, umas linhas à frente o senador carrega outra vez na doutrina que todos (sem excepção) devemos aceitar: “(...) os especuladores que pensam ganhar fortunas com a queda do euro são, em grande parte, os mesmos que foram os responsáveis impunes pela crise global, que, como se sabe, se iniciou na América do Norte, em 2008”. Depois da verdade bombástica, o Dr. Soares segue para bingo – que é como quem diz, atira-se a outras verdades perenes.
Que mal se lhe pergunte, senador: e se pusesse nomes dos demoníacos especuladores na fornalha? Tem a certeza que esta malvada gente quer “ganhar fortunas com a crise do euro”? Já o leu, ou escutou, afirmado de viva voz pelos próprios? Ou está apenas a imputar intenções? E a crise, não começou em fins de 2007? Se bem me recordo dos alicerces do republicanismo caduco de que se gaba de ser um esteio, uma das “virtudes republicanas” é tratar todos por igual. Se eu aparecesse a garantir o que V. Exa. assegurou com o tamanho que só os imperativos categóricos têm, era logo desafiado a comprovar.
Lá está a armadilha fatal: quando se diz “é”, há logo um “porque” a espernear na frase. De outro modo, senhor senador, as suas verdades só existem na sua cabeça. E não se deixe atraiçoar outra vez: o seu endeusado republicanismo não o deixa deslizar para a sobranceria de apoucar os ousados que discordem de V. Exa. O seu endeusado republicanismo preceitua que somos todos iguais. Desça do pedestal e comece a usar “porques”.
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