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O adro está pejado de gente. Garotos, na maioria. Também alguns mais velhos, com saudades do vigor que já teve uma era. Envergam fatiota a preceito. Cores garridas, encarnado de preferência, em cima de calças e camisas brancas. Os mais bravos vão para o terreiro. E os mais bêbados também se juntam. Os primeiros ostentam a galhardia marialva, nariz apontado ao alto enquanto sobrevoam o olhar pela raiz das pálpebras inferiores. Em jeito de desafio: ai de quem desconfie da bravura. Os segundos atrapalham a função. Descompõem-se em passos cambaleantes, jogando o desequilíbrio contra o donaire dos valentões que aguardam que a fera tenha alforria e dispare em louca correria pelo adro fora.
Distingue-se a pose majestática dos que arrebanham a valentia para a anual garraiada. Ao início, falsamente focados no que os espera. Só fazem de conta que os olhos estão compenetrados aguardando a besta negra que há-de aparecer de rompante. Não percebem que os percebem, o olhar discretamente desviado à cata de donzelas que se possam excitar com as façanhas prometidas. Não sabem que as donzelas gostam de circo.
Os brigões de bichos indefesos continuam a pose de bandarilha. São forcados frustrados. Alinham-se numa roda à socapa do touro que está para chegar. Congeminam estratégias para domar o bicho em três tempos. Segredam as estratégias com a pose grave de quem se prepara para tarefa nobilitante. Alguns cultivam a tradição a preceito: uns barretes ribatejanos, as botas de camurça castanha, as patilhas que crescem como a ocasião impõe. Escarram para o chão, como gatos a marcar território. Levantam os punhos à altura dos ombros e repousam os dedos nas lapelas da camisa, em ambos os lados, puxando o tecido para fora – como se mostrassem o peito inchado, sinal da audácia singular.
O público está em polvorosa. A tensão adeja, como se contaminasse a atmosfera com uma implacável humidade que a torna mortiça. E, todavia, aquele público é reincidente. Como repetentes são os esboços de forcado que sinalizam aquele dia como o dia anual da afoiteza que deixa donzelas embeiçadas e os outros, madraços e covardes, roídos de inveja. Até parece que vem lá uma besta mastodôntica, corpanzil assustador, patas pesadas cavalgando ruidosamente as pedras da calçada.
Em vez de um adamastor, soltam-se os curros e de lá emerge uma caganita de bicho. Um tourinho infantil, desajeitado, destrambelhado pela algazarra que se montou a toque de rebate dos urros da multidão empertigada. Um doidivanas, o maior de todos, arremete contra o bicho. Leva consigo uma corda, que consegue passar à volta do pescoço do animal. A garraiada na sua estultícia. Não se ofendam as tradições – exigem, ofendidos, os defensores da coisa, a tradição preservada em formol como argumento definitivo. Nem que por ali se festeje um triste circo em que meia dúzia de (frustrados) intrépidos só o conseguem ser sabendo de antemão que a luta é desigual e os favorece. São muitos contra um irrelevante, e ainda por cima desnorteado, bicho.
No fim da função, quando alguns bêbados tiverem sucumbido ao desequilíbrio e forem pisoteados pelo desatinado animal (coleccionado as nódoas negras que o dia seguinte há-de destapar), e quando o bicho cair de quatro domado por centos de valentões que saltam para o adro quando deixam de enxergar o pelo malhado do tourinho, toda a gente vai feliz para o resto da festança. Vão beber em sagração dos deuses que nos permitiram sermos antropocêntricos e bestialmente bestas.