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Dormia com uma 38 milímetros debaixo da almofada. Mas quando deitava o corpo nos lençóis era sempre um sono dos justos que arrimava. Nem um grama de chumbo a pesar sobre a consciência. Nem que muitas malfeitorias atropelassem os dias. Já matara. Já vendera drogas pesadas – e quase sempre adulteradas, que andarilhava por inconfessáveis vícios privados que exigiam abastadas carteiras. Não tinha conta bancária. Oficialmente desempregado, não pagava impostos. Ostentava a impressão digital de gangster no potente bólide que berrava os antípodas da discrição.
A escola, que aborrecimento e inutilidade, era uma remota lembrança onde começou a ruminar a faceta de fora de lei. Hoje não se arrepende. Às vezes cruza-se com colegas da escola e nota a miséria em que se debatem. Alguns aventuraram-se nos estudos universitários, fizeram-se doutores e não saem da cepa torta. Sabe que a instrução não faz vingar os melhores. Sabe: que o mundo merdoso é uma selva onde todos são chacais uns dos outros; onde só as hipocrisias mandam respeitar códigos de conduta que nem aos ingénuos pertencem. É matar ou morrer. Às vezes, literalmente. Outras vezes, com o delico-doce canto das metáforas.
O dia começa a meio da tarde. À hora em que os outros tomam o lanche, abarbata-se com um farto pequeno-almoço que se confunde com um opíparo almoço. Trata os empregados de mesa com o desdém de quem se acha superior. A sua particular lente do mundo desfoca os olhos para o preconceito social que, dir-se-ia, é mais próprio de gente de superior linhagem (assim se acham) que não convive com a demais gentalha (burguesia e arrivistas sociais incluídos). Esta é uma exclusão em que teimam os que, como ele, pisam o risco da lei todos os dias. Olha para os demais – e não importa a condição social – e escorre um sorriso sobranceiro. Por dentro, a reconfortante sensação de levar uma vida fácil e tão pródiga em proveitos materiais.
Para o exterior, para os que lhe são próximos e, néscios, porfiam numa vida honesta, dramatiza o modo de vida. Está farto de ouvir conselhos sábios, advertências impregnadas de moral que rima com legalidade instituída. A cada interpelação, retorquia com um ar compungido: “sabes lá tu o martírio que levo”. As pessoas acreditavam, decaindo perante a sua sinceridade, aquele olhar ao mesmo tempo matreiro e de quem dorme poucas, e mal amanhadas, horas de sono. As pessoas acreditavam que vivia sufocado pela possibilidade de uma pandilha de polícias à paisana, tão maltrapilhos como ele, lhe deitar a mão. Pensavam que fugia dos ajuntamentos, que era um solitário com perenes dores de cabeça só de imaginar que a alvorada que rompia a meio da tarde era o derradeiro dia. Que tanto o podia ser da vida, como da liberdade. Se lhe perguntassem, diria: “a acontecer, do mal o menos, que seja o derradeiro dia da existência”.
Enquanto puxava lustro à 38 milímetros, estava seguro que polícia algum lhe daria caça. Tinha os seus trunfos. Informadores de confiança que lhe diziam, em antecipação, que havia agentes disfarçados a rondar as ruelas do bairro. E antes que os pelintras à paisana soubessem quem era, já metia amizade com eles. A ensandecida estratégia de se meter na boca do lobo. Metia-os no mais profundo bas fond, cúmplices das piores ilegalidades. A certa altura, os predadores eram a caça grossa que ele tinha arpoado com um golpe de génio. Por isso é que dormia o sono dos justos.
À cautela, não fossem as curvas dos dias trazer uma mais traiçoeira, a sua cabeça tinha que sentir o coldre da 38 milímetros.
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