1.3.11

Morangos azuis


In http://sp2.fotolog.com/photo/2/16/11/inconstantine/1219943854909_f.jpg
(Conto surrealista ensaiado)
A libelinha cantou para dentro do trompete abandonado. O velho desdentado, cheio de sede, bebeu cálices imaginados que esvoaçavam sobre a sua cabeça. As nuvens estavam amarelas. Não era cirrose, que S. Pedro (o pastor das nuvens que se acastelam nos céus) é alérgico à bebida. Um cão alçou a pata e mijou na perna impecavelmente depilada de uma dondoca pré-quarentona. Estava tão entretida no parlatório espúrio com outra da mesma igualha que não sentiu a urina quente a escorrer para dentro do sapato envernizado.
No banco do jardim, o octogenário aperta as sapatilhas de marca, aperaltando a fatiota e a gravata antes da corrida matinal. Alonga os músculos das pernas, não vão as moscas do lago mordiscá-las. À lapela traz uma fotografia de Estaline. Não abdica da sua aparência dandy nem quando pratica o exercício higiénico. Deixa o chapéu de coco escondido atrás de um arbusto, mas antes tira cinco folhas de papel higiénico para acamar o chapéu. Atira-se, decidido, à corrida por entre os patos e as garças tagarelas.
O drogado cambaleia com um sapato de cada nação. O nariz espetado no chão, os olhos tergiversando de um lado para o outro, entaramelando-se nos arbustos hirsutos. Vão em demanda (nariz e olhos) de uma miragem que só a ressaca colossal anima: um pacotinho com “cavalo” à mão de semear, provavelmente caído do bolso negligente de um parceiro como ele, desequilibrado no trote aos tremeliques.
A menina rebelde andava fugida do internato. Cansou-se das mezinhas moralistas das freirinhas que usam lingerie rendada – que já as viu pelo buraco da fechadura enquanto tomam o banho semanal ungido pela água benta das missas anteriores. Meteu conversa com o drogado. Absorto, só lhe ecoou no cérebro desfeito uma vaga lembrança de uma voz doce. Mas as palavras eram ininteligíveis. E já não acreditava em sereias. Não chegou a compreender que a menina, com a sua candura, perguntara se tinha perdido o chapéu, ou os óculos, ou o norte. Afastou a menina pertinaz com o braço imundo.
A menina viu o velho dandy comunista a correr como um desalmado. Era porque estava a fugir de um vilão – articulou a conclusão para os botões amarfanhados da mantilha gasta por tanto uso. Ou porque fugia do seu passado. Ergueu os braços e gritou: “ó velho elegante, sossega que eu sou valente e vou sovar quem tem persegue”. O velho esquecera-se do sonotone em cima do piaçaba da casa de banho, atamancado entre as revistas sobre a construção de barragens e o cachimbo de marfim oferecido por um sargento cubano e destacamento em Angola (Lembra-se, vagamente, que corria à boca pequena que o sargento se apaixonara pelo velho que na altura o não era, nos tempos áureos em que era professor e doutrinava os futuros quadros no marxismo pujante.) Surdo, o velho não abrandou o passo. A menina estava a dizer adeus a uma amiga que vira no horizonte – rumorejou nos pensamentos fugazes que correm mais depressa do que as pernas corredoras.
A menina, chorosa, sentou-se num declive nos arrabaldes do parque. Afastou os arbustos viçosos e viu um imenso campo onde floriam morangos azuis. Do sapato chamou a madre superiora. Ela atendeu com a habitual voz azeda (as freiras azedavam por causa da abstinência de prazeres respeitada pelo clero todo). De sapato na mão, em pose triunfal, as lágrimas lentamente escorrendo pelo rosto, a menina insubmissa acrisolou a vingança:
- Madre superiora, sou eu, a sua mais que tudo que ganhou o troféu dos castigos. Não diga nada, não me interrompa. Só quero confirmar que a sua comandita é uma resma de mentirosas. Estou diante de um campo de morangos azuis. Quem disse que eles não existem?

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