2.3.11

Os valimentos do rancor


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Sabes, a amargura sem contexto semeia um fel sem préstimo. Os olhos incendeiam-se no rubor das pupilas exaltadas. Extingue-se a lucidez, mergulhada num périplo perigoso, numa vertigem que pespega ao estômago as tormentosas náuseas. O ressentimento resgata as suas vítimas. Elas não são os destinatários da fúria acometida. Repara bem: é a fábula dos telhados de vidro. A pedra atirada ao alto estatela-se no telhado de quem a lançou.
Não tem serventia o rancor fervente. A espuma que vem ao de cima é a cicuta que te envenena sem remissão. Convences-te que o veneno, se for soprado por cima da vítima desejada, lhe queima as pálpebras, corrói as entranhas até ao feitiço derradeiro o deitar no leito fatal. Onde, acreditas, as vinganças se entronizam como justiça divina que não se deixa corromper pelas tremendas injustiças terrenas.
Acreditas. Mas, porventura, a clareza não campeia no horizonte que te é dado a ver. Uma fina neblina, entretanto engrossada pelos vapores emproados pela humidade embaraçosa, caldeia os olhos que julgas conspícuos. Os julgamentos ficam para quem honra a legitimidade de ser juiz. Erras na porta em que bates se aprecias em ti o atributo do julgamento. Esta inútil demanda é o pasto para as consumições que se elevam desde as profundezas deixando a tua carne em incandescência. Descontrolada. Doentia.
Devia dizer: já foi palco que pisámos. Um palco que perdeu relevância. O teatro esvaziou-se. E agora, só tu o visitas como se fosses alma penada por dentro de ti. Os fantasmas estão algures. Não te adianta dar caça aos fantasmas que tudo o que encontras é matéria volátil, um vento que julgas agarrar entre os dedos e se escapa por mais que o apertes com toda a força das mãos. Os fantasmas exorcizam-se. Na depuração dos interstícios que se acomodam nas ideias feitas, no auto-julgamento que te profetiza senãos ausentes. Admira-me essa complacência interior. Projectas nos outros os males que, sem o admitires, são teus e vagueiam nas veias em furiosa efervescência. Devia dizer tudo isto. Mas prefiro o silêncio.
Os rumores das aves deviam aplacar a ira em ponto de ebulição. Neste arremedo de primavera, os estorninhos e as andorinhas antecipados medram uma quietude inesperada. O sol que já aquece os corpos não é a sagração da primavera. O mar coevo desmente-a pelas ondas em altercação que tudo desarrumam. Talvez o mar em rebuliço seja o retrato da ira interior. Saibas aproveitar os predicados dos dias soalheiros para temperar o crepitar das cinzas que teimam, acesas, como se delas colhesses a flor que é a haste maior.
Os caminhos desunem-se, como se um rio selvagem corroesse os alicerces do terreno, dividindo em dois o caudal em sobressaltos. Prosseguem os rios descarnados por latitudes diferentes, na indiferença possível a quem desconhece o paradeiro alheio. As águas alteradas, em sucessivos turbilhões que se desmancham no interior de si mesmos, bebem acalmia mais à frente. Os rios dantes enfurecidos derrotam os promontórios íngremes que sulcaram e encontram, enfim, as planícies onde repousam, enfraquecidos. Em sendo possível, as partículas em suspensão deitam os olhos para trás. Notam, ao longe, as montanhas silvestres que adestraram pesadelos insuportáveis. Mas agora, desvigoradas decerto, repousam na languidez do dia claro que depôs a terrível noite que parecia não ter fim.
Se alguma serventia houver na ira interior em que te consomes, que seja a de aportares numa planície dourada onde as águas se serenam. 

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