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Ah, a boçalidade emprenha-se em todos os sentidos quando perfila a existência na linha do horizonte. Existe imerso nos modos bestializados, como se tudo nele fosse uma pocilga imunda onde chafurdam os porcinos embevecidos pelos pedaços de excremento que se colam aos quadris.
Amesenda. Deita a proeminente pança em cima do cinto, para onde escorregam uns gelatinosos quilos de massa adiposa, e passa os olhos esfaimados pelas iguarias deitadas nas travessas encomendadas pelos comensais que chegaram antes. Os petiscos de entrada, devora-os num instante que consome a gula de braço dado com o apetite voraz. Bebe copos de vinho inteiros, de um trago apenas. Alambaza-se com dose e meia de sarrabulho. Entre as garfadas que mete à boca com espalhafato – por entre os vestígios que ora respingam para a barba farfalhuda e descuidada, ora aterram no atoalhado que acama a mesa, ora emporcalham a gravata roxa – mal sobra tempo para recuperar a respiração. Falar diante das iguarias é pecado mortal.
Quando a refeição termina, depois de duas sobremesas e de ainda espetar o garfo na sobremesa do comensal que estava em sua companhia, estica as pernas e empurra a proeminente pança para fora. Deixa escapar um arroto logo a seguir a encomendar um café, um bagaço e alguns palitos para escovar os restos que aderiram às cavidades entre os apodrecidos dentes.
Na demora dos palitos, vai exercitando os músculos maxilares numa coreografia em que a língua dança de um lado para o outro das gengivas, procurando demover os restos da refeição. Ainda demorando os palitos, espetou um dedo na boca bem aberta e foi lá atrás, a um dos dentes mais afastados, escavacando com a unha encardida uma fiada de carne que adejava, teimosa, na fossa cavada entre dois dentes. Quando enfim vieram os palitos, quase todas as sobras não embarcadas para o estômago já tinham sido exterminadas pela ginástica bocal e pela unha diligente. Um palito serviu para terminar a função, como se fossem as arestas que faltavam limar. Quando venceu a resistência de uma sobra alimentar, inspeccionou com detalhe o que trouxe o palito. Em tratando-se de alimento, usou o palito como garfo. A comida não se desperdiça.
Convocou a presença do empregado de mesa, com os modos rudes como trata as pessoas. Dá-se o caso de os empregados de mesa, porque servem as refeições que comprazem a pança, estarem no fim da escala social e merecerem o tratamento mais aviltante. Como são serviçais só um pouco acima da escravidão, exige a conta (não pede, nem a expressão “por favor” faz parte do vocabulário conhecido). Deixa uma moeda de dez cêntimos de gorjeta, só porque o outro comensal chamou a atenção para a cortesia necessária. Contrariado, deixa, à passagem pelo empregado com cara de poucos amigos, uma sonora flatulência e pensa com os seus botões: “toma lá a gorjeta que mereces”.
Deve ser a pessoa que exterioriza mais contentamento à face do planeta. Poder-se-ia dizer, com algum desprazer, que fere a vista. Que atropela as convenções estabelecidas, as que destapam a frugal educação que manda não arrotar ou pôr os cotovelos em cima da mesa, ou distraidamente limpar o pavilhão auricular com a unha do dedo mindinho que cresceu a propósito. Não interessa se cresceu na ignorância dos tratos de polé da muita educação, daquela educação que ensina os punhos de renda, ou se há dolo nos ferimentos constantes às convenções ditadas. Não interessam as causas. Apenas as consequências. E observá-las, enquanto os olhos não se conseguem desviar.
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