20.12.11

Os bacantes


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Foliões sem o baraço dos limites. Quando eram dias desses, espalhavam um vendaval. Tudo ficava em alvoroço. Eram os cães das moradias de luxo que desatavam a ladrar furiosamente com a latoada ruidosa. As campainhas dos condomínios reservados eram teclado para sinfonias rebeldes interpretadas pelos dedos suados. Os bancos do jardim regados com a urina em tardia destilação do álcool que já era de mais. Do álcool que talvez ainda fosse de menos, que noutro bar aviavam uma e mais outra bebida em proveito da arritmia dos sentidos.
E o que era o razoável? Serem os doutores e engenheiros e arquitetos apessoados nas suas fatiotas diurnas, a pose estruturalmente britânica? As consortes já tratadas com indiferença, no arrazoado da rotina que não sabiam se era cansaço, se era acomodação? Um deles lembrou-se de um filme italiano da década de oitenta. E de como os compinchas de meia-idade, todos bem postos na respeitabilidade das altas sinecuras que eram suas, blasfemavam da rotina tirânica e corriam à estação de comboios só para esbofetear os passageiros que espreitavam à janela na despedida das pessoas queridas que os acompanharam à gare. Tentaram a imitação da proeza. A hora tardia desenganou-os: não havia ninguém na estação.
As pernas cansadas não derrotavam a alucinação. Teriam bebido um elixir da juventude? Fieis às tradições da geração, recusavam drogas que prolongassem a algazarra. Tinham medo que a algazarra fosse artificial. E tinham medo, apenas. Empunhavam à lapela um dístico que o estroina com mais jeito para as artes visuais tinha desenhado. O deus Baco em contraluz, esmagado contra o papel com lápis de carvão. De cada copo que bebiam de um trago levavam os lábios de encontro ao dístico que sagravam com um empenhado beijo. E abraçavam-se enquanto cambaleavam sem ostentação, jurando a perenidade da confraria.
Ao menos enquanto eram bacantes desapareciam as agonias que cercavam cada um deles. Na noite demorada, que terminava quando o amanhecer depunha a noite possuída pela tibieza, julgavam-se imortais. Era uma imortalidade efémera. A manhã, com a luz clara a insinuar-se nas pálpebras tão sensíveis, predizia o esgotamento. Desfaziam-se as ilusões. Ao acordar, o relógio já pressentia a hora do almoço. Entre a cabeça que pesava e a língua de trapos da consorte que chamava para o repasto, sobrava a doce ilusão de terem sido bacantes por um punhado de horas. 

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