Talking Heads, “Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=sZpZuIWu1tw
Tirou a mortalha dos dedos, sem se incomodar com o amarelecido que os cobria. Era mais um cigarro. Só mais um cigarro. Já aprendera a não importunar os outros com o fumo expelido pelos cigarros seus. Refugiava-se na solidão enquanto saboreava um cigarro. Melhor dizendo: acantonava-se na solidão, já habituado a ela. O cigarro era o móbil dos prazeres que, nesta altura da vida, importavam.
Não o dizia para se convencer da ausência de outros prazeres. Não o dizia com ressentimento, nem como máscara de uma punição que se virava sobre si mesmo. Era mesmo assim. Por isso fumava como nunca. Perdia a conta dos cigarros durante o dia. Propositadamente, perdia-se no inventário. E nem a doença que o acometera atuava como travão ao tabaco. Tinha todos os incentivos do mundo para deixar de fumar: a doença atacara os pulmões e os médicos, sabedores do vício, eram categóricos ao ordenarem a proibição do tabaco. Ele dizia que sim, com ar falsamente pesaroso. Só não queria suportar mais minutos dentro do consultório. Quanto menos tempo lá estivesse, menos tinha de lidar com a maldita doença – e, o que o apoquentava mais, com o moralismo dos médicos disfarçado de altruísmo.
Ninguém sabia que estava doente (a não ser os médicos que o acompanhavam). Não queria exportar a dor para os outros, os mais próximos de si. Não estava seguro se era por esse motivo, ou se era para prevenir as reações caritativas ao saberem da doença. Fosse como fosse, convenceu-se que a dor só cabia a ele. Mesmo quando perguntavam por que estava magro e macilento, respondia não ser nada de especial, apenas um pequeno descontrolo de alguns parâmetros das análises sanguíneas, e que estava em diligências medicamentosas para suprir a fraqueza. Terminava sempre com um pedido, que por dentro de si soava mais a um apelo: “não se incomodem comigo. Está tudo bem.” Para, depois de uns segundos de pausa e do olhar perdido na lonjura do horizonte, repetir, sílaba a sílaba, “es-tá tu-do bem”.
Não entendia por que não tinha perdido o sono. Dantes, quando era confrontado com a doença de pessoas próximas, ao deitar-se, interiorizando sobre o assunto, pressentia que se calhasse a sua vez o sono ficaria diluído na dor pungente e no medo da morte. Surpreendentemente, tudo acontecia ao contrário. Já não se lembrava de noites seguidas sem interrupções no sono, sem insónias, sequer. Sabia que ia morrer. Para se convencer, repetia um lugar-comum: “todos vamos morrer, um dia destes.” – e logo de seguida, fazia o que era costume quando decaía para o lugar-comum, vilipendiando o lugar-comum (e a existência de lugares-comuns), como se estivesse a castigar-se pelo perjúrio. Era muito provável que a doença o consumisse a ponto de as defesas ficarem exangues e, assim, fosse deposto nos braços da morte. Não tinha a certeza que este era o epílogo da doença. (Ou desligava-se da corrente de cada vez que os médicos franziam o sobrolho, ao interpretarem as recentes análises, observando, com um ar profissionalmente compungido, “isto não está nada bom...”)
Restavam os cigarros. E a decadência. Descobriu outra razão para esconder a patologia dos outros. Não queria os mais incrédulos a repetirem à exaustão “o pobre, tão novo e já encomendado”. Não queria saber se era novo ou velho para deixar de viver. Não queria saber da comiseração dos outros. E dispensava o fatalismo irrecusável assinado pela caridade alheia. Talvez sem contar, deu consigo a dizer: “hoje tenho consciência do céu.” – e lembrou-se que estava a citar de cor do “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa.
Nesta proclamação, meteu-se no estábulo do insólito. A menos que desse conta que estava a falar pela boca de uma metáfora.
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